Vontade,
natura naturans, origem e energia das
coisas, marca o início da longa viaem por dentro e em torno do homem. Os olhos
de ressaca, que vem do mar e do infinito, sugerem a presença de uma força que
arrasta e apavora. Reflexo religioso na essência, pseudo-religioso nas
circunstâncias, o sentimento do homem diante do mundo diante do mundo sugere o mysterium tremendum, o mistério que faz
tremer. O terror, o pavor pânico, mais ameaçador e mais poderoso do que todas
as coisas criadas, sugerindo uma entidade escondida, extraordinária e estranha,
alimenta a resistência de entrar nas águas do mar, inspira o desespero da luta, para não perecer no
grande e eterno e eterno nada. O mistério, superior às coisas e aos fenômenos,
mais alto que o homem e seu destino, será evocado sempre por um golpe na alma,
o amor, a revelação do amor, a morte. Na energia que o ímã projeta há o raio
que fascina e arrasta, o convite dionisíaco à embriaguez, que leva a ressaca
para o oceano sem fim. Para domar o insondável e salvar-se das ondas, há um
caminho que domina o mistério e pacifica o terror. Caminho que os eleitos
conseguem pisar, discernindo a linha reta dos atalhos que extraviam, na
identificação mágica do encantamento, por meio da posse da realidade fremente
que habita o homem, posse que leva ao êxtase e à exaltação. Só por via da
graça, na humanidade que se deprecia a si mesma, chega-se a Damasco. Este
reflexo sobre a pessoa se ilumina com o sentimento de dependência ao criador,
no sentimento e no reconhecimento do estado da criatura. O humanitismo, ao tempo que evoca o primeiro lance, o mysterium tremendum, fecha as portas ao
estado da criatura. O homem. perseguido, segundo Pascal, pelo orgulho que o
identifica a Deus, ou pela semelhança ao animal, encontra, no meio termo, a sua
vocação existencial e religiosa. O homem não tem destinos tão altos e tão
extraordinários, reduzindo-se, na óptica machadiana, a uma peça um grane jogo, peça inconsciente do mundo
eterno, da natureza que se expressa em tudo. “Nota que eu não faço do homem um simples veículo de
Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o
próprio Humanitas reduzido; daí a necessidade de adorar-se a si próprio” (M.P.,
CXVII). A ética que deriva dessa concepção do mundo se afasto dos preceitos e
dos comandos, como queria Schopenhauer, mas se arreda também do pessimismo, que
só existe na perspectiva do indivíduo e nao na perspectiva da natureza. A
desgraça maior não consiste em nascer, mas, ao contrário, em não nascer. Dentro
da luta e das controvérsias, no espetáculo da inveja e do homicídio, arde
sempre a vida, que distribui as missões aos homens, aos animais e às coisas.
“Olha: a guerra que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se
disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (ele chupava
filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a
própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema,
senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano,
suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um
navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze
homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a
cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim este frango, que eu
almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas,
executados com o único fim de dar morte ao meu apetite” (M.P., CXVII).
Surpreendentemente, no antropomorfismo que a resignação sugere, identificando a
vontade metafísica à vontade no espaço e no tempo, a filosofia volta-se para o
otimismo caricato, sobre as cinzas da justiça e da liberdade, após a queda do
bem e do mal. O mal não existe, todas as coisas são boas, dirá rejeitando Santo
Agostinho, contanto que, num giro da ética sobre a metafísica, o homem abandone
o papel de criatura e cinja a máscara do instrumento do universo. “Sendo
Humanitas a substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a
maior delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende:”...
(apesar dos flagelos) “não diminuiria o poder espiritual do homem sobre a
terra, inventada unicamente para seu recreio (dele), com as estrelas, as
brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss... não era tão tolo como o pintou
Voltaire” (M. P. , CXVII).
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis: A Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro, RJ.
3ª
edição. 1988.