quarta-feira, 30 de janeiro de 2013
G. RAMOS
O
essencial era retirar-me de Alagoas e nunca mais voltar, esquecer tudo, coisas,
fatos e pessoas. Alagoas não me fizera mal nenhum, mas, responsabilizando-a
pelos meus desastres, devo ter-me involuntariamente considerado autor de
qualquer obra de vulto, não reconhecida. Moderei a explosão de vaidade besta:
impossível contrapor-me a homens e terra, a todos os homens e a toda a terra,
vinte e oito mil quilômetros quadrados e um milhão de habitantes. Essa horrível
presunção de selvagem tinha um mérito: vedava-me identificar inimigos, dirigir
ódio a alguém. O ódio se dispersava, diluía-se, era uma indeterminada
repugnância morna, alcançava os edifícios, o morro do Farol, o Aterro, a praia,
coqueiros e navios repisados no último romance, inédito, feito aos arrancos,
com largos intervalos. Certas passagens desse livro não me descontentavam, mas
era preciso refazê-lo, suprimir repetições inúteis, eliminar pelo menos um
terço dele. Necessário meter-me no interior, passar meses trancado, riscando
linhas, condensando observações espalhadas. Não, porém, no interior de Alagoas:
indispensável fugir a indivíduos que me conhecessem. Era pouco não tornar a pôr
os pés no palácio dos Martírios: queria evitar indiscretos que me houvessem
visto manuseando os horríveis papéis sujos.
Não
me lembrava das pessoas. Osman, dr. Sidrônio e Luccarini eram sujeitos
decentes. Mas a engrenagem onde havíamos entrado nos sujava. Tudo uma porcaria.
Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida
para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso, dávamos um salto
perigoso, descontentávamos incapacidades abundantes. Essas incapacidades deviam
aproveitar-se de qualquer modo, cantando hinos idiotas, emburrando as crianças.
O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam agüentar políticos
safados e generais analfabetos? Necessário reconhecer que a professora mulata
não havia sido transferida e elevada por mim: fora transferida por uma idéia,
pela idéia de aproveitar elementos dignos, mais ou menos capazes. Isso
desaparecia. E os indivíduos que haviam concorrido para isso desapareciam
também. Excelente que Osman, em cima, e Luccarini, em baixo, continuassem. Não
continuariam muito tempo. Ficava a estupidez: “Ouviram do Ipiranga as margens
plácidas”. Para que meter semelhante burrice na cabeça das crianças, Deus do
céu? Realmente eu havia sido ali uma excrescência, uma excrescência agora
amputada, a rodar no bonde, a olhar navios e coqueiros. De certo modo as
ameaças dos telefonemas me agradavam; embora indeterminadas, indicavam mudança,
forçar-me-iam a azeitar as articulações perras. Conservara-me regulamentar e
besta mais de três anos, numa cadeira giratória, manejando carimbos, assinando
empenhos, mecânico, a deferir e indeferir de acordo com as informações de seu
Benedito, realmente obedecendo a seu Benedito. Que diabo me fariam? Imaginei um
desacato, tirou ou facadas, em hora de movimento, no relógio oficial. Osman me
perguntara certa vez:
—
Você anda desarmado? Em que é que você confia, criatura?
Depois
disso José Auto me emprestara um revólver, mas o revólver tinha apenas três
balas e de ordinário ficava nas gavetas, era difícil encontrá-lo. Fora um
alívio a restituição. Ia fazer-me falta quando me agredissem. Foi o que
imaginei: uma agressão pública, muitos integralistas atacando-me, furando-me,
partindo, partindo-me as costelas, os braços e a cabeça. Recolhi-me.
Na
casinha de Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as últimas páginas do
romance. Os consertos não me satisfaziam: indispensável recopiar tudo, suprimir
as repetições excessivas. Alguns capítulos não me pareciam muito ruins, e isto
fazia que os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era um
falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda
a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte e sete dias de esforço, com
razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente
eu era um assassino bem chinfrim. O delírio final se atamancara numa noite, e
fervilhava de redundâncias. Enfim não era impossível canalizar esses
derramamentos. O diabo era que no livro abundavam desconexões, talvez
irremediáveis. Necessário ainda suar muito para minorar as falhas evidentes.
Mas onde achar sossego? Minha mulher vivia a atenazar-me com uma ciumeira
incrível, absolutamente desarrazoada. Eu devia enganá-la e vingar-me, se
tivesse jeito para essas coisas. Agora, com a demissão, as contendas iriam
acirrar-se, enfurecer-me, cegar-me, inutilizar-me dias inteiros, deixar-me
apático e vazio, aborrecendo o manuscrito. Largara-o duas vezes, estivera um
ano sem vê-lo, machucara folhas e rasgara folhas. As interrupções e as
discórdias sucessivas deviam ser causa daqueles altos e baixos, daquelas
impropriedades. Conveniente isolar-me, a idéia da viagem continuava a
perseguir-me. De que modo realizá-la? Havia uma penca de filhos, alguns bem
miúdos. E restava-me na carteira um conto e duzentos. Apenas.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume – Viagens
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
GR
Mais
tarde, na chefia do bando, Riobaldo reconhece, melancolicamente, que não deu
batalhas suficientes, e embora tivesse varado mundo em comando, não se prezava
bastante o seu nome: Urutu-Branco era um desconhecido. Mas, então, tudo naquela
parte dos Gerais era ilusão de haver e não se saber?” E quando o companheiro,
recém-chegado de longas andanças, o chama de Tatarana, disfarça a decepção: “O
seja que tivesse vivido esses tempos tangendo urubu, adformas que vinha agora
na ignorância de que eu é que era o Chefe.” Amargura-o a falta de ressonância
do sertão imenso: “``As vezes, não sei por que, eu pensava em Zé Bebelo,
perguntava por ele em outros tempos; e ninguém conhecia aquele homem lá, ali. O
de que alguns tivessem notícia era da fama antiga de Medeiro Vaz.”
Quando
Joca Ramiro é morto à traição, como os heróis de legenda — Hermógenes e
Ricardão, os assassinos, se degradam, como aquele Dom Galvan, cavaleiro de má
andança, réu de covardia e deslealdade.
Riobaldo
vai anunciar aos companheiros de outro bando a morte de Joca Ramiro. Cena e
palavras medievais. O grupo está reunido quando ele chega e brada, ainda a
cavalo: “Trago notícia de grande morte! —
Eles todos tiraram os chapéus para me escutar. Então, eu gritei: — Viva a fama de glória de nosso Chefe Joca
Ramiro! — E pela tristeza que estabeleceu minha voz, muito me entenderam.”
A
travessia do Liso do Sussuarão, que Medeiro Vaz — Percival ou Lancelote — apesar de todos os
preparativos, não conseguiu realizar, Riobaldo — Dom Galaaz —
realiza, protegido pelo acaso, sem mesmo se haver preocupado com
provisões.
Como
os cavaleiros corteses, Riobaldo muda de apelido guerreiro, primeiro Jagunço Tatarana, depois chefe Urutu-Branco.
Na
casa da fazenda abandonada, quando se levanta um pano branco por cima das
moitas, em pleno combate, Zé Bebelo é formal: “Regra é regra! A solenidade de
embaixador sempre se tem de consentir, até para herege, até para bugre”.
A
idade de ouro, de Ovídio, celebrizada nos romances de Cavalaria, comparece:
“Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode
permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar
roça e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a
colheita, e tudo o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não pensei
— mas meu coração pensava.”
M.
Cavalcanti Proença
Trilhas
no Grande Sertão
Os
Cadernos de Cultura 114
MEC.
Rio de Janeiro, DF, 1958.
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
MACHADO
Vontade,
natura naturans, origem e energia das
coisas, marca o início da longa viaem por dentro e em torno do homem. Os olhos
de ressaca, que vem do mar e do infinito, sugerem a presença de uma força que
arrasta e apavora. Reflexo religioso na essência, pseudo-religioso nas
circunstâncias, o sentimento do homem diante do mundo diante do mundo sugere o mysterium tremendum, o mistério que faz
tremer. O terror, o pavor pânico, mais ameaçador e mais poderoso do que todas
as coisas criadas, sugerindo uma entidade escondida, extraordinária e estranha,
alimenta a resistência de entrar nas águas do mar, inspira o desespero da luta, para não perecer no
grande e eterno e eterno nada. O mistério, superior às coisas e aos fenômenos,
mais alto que o homem e seu destino, será evocado sempre por um golpe na alma,
o amor, a revelação do amor, a morte. Na energia que o ímã projeta há o raio
que fascina e arrasta, o convite dionisíaco à embriaguez, que leva a ressaca
para o oceano sem fim. Para domar o insondável e salvar-se das ondas, há um
caminho que domina o mistério e pacifica o terror. Caminho que os eleitos
conseguem pisar, discernindo a linha reta dos atalhos que extraviam, na
identificação mágica do encantamento, por meio da posse da realidade fremente
que habita o homem, posse que leva ao êxtase e à exaltação. Só por via da
graça, na humanidade que se deprecia a si mesma, chega-se a Damasco. Este
reflexo sobre a pessoa se ilumina com o sentimento de dependência ao criador,
no sentimento e no reconhecimento do estado da criatura. O humanitismo, ao tempo que evoca o primeiro lance, o mysterium tremendum, fecha as portas ao
estado da criatura. O homem. perseguido, segundo Pascal, pelo orgulho que o
identifica a Deus, ou pela semelhança ao animal, encontra, no meio termo, a sua
vocação existencial e religiosa. O homem não tem destinos tão altos e tão
extraordinários, reduzindo-se, na óptica machadiana, a uma peça um grane jogo, peça inconsciente do mundo
eterno, da natureza que se expressa em tudo. “Nota que eu não faço do homem um simples veículo de
Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o
próprio Humanitas reduzido; daí a necessidade de adorar-se a si próprio” (M.P.,
CXVII). A ética que deriva dessa concepção do mundo se afasto dos preceitos e
dos comandos, como queria Schopenhauer, mas se arreda também do pessimismo, que
só existe na perspectiva do indivíduo e nao na perspectiva da natureza. A
desgraça maior não consiste em nascer, mas, ao contrário, em não nascer. Dentro
da luta e das controvérsias, no espetáculo da inveja e do homicídio, arde
sempre a vida, que distribui as missões aos homens, aos animais e às coisas.
“Olha: a guerra que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se
disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (ele chupava
filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a
própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema,
senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano,
suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um
navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze
homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a
cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim este frango, que eu
almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas,
executados com o único fim de dar morte ao meu apetite” (M.P., CXVII).
Surpreendentemente, no antropomorfismo que a resignação sugere, identificando a
vontade metafísica à vontade no espaço e no tempo, a filosofia volta-se para o
otimismo caricato, sobre as cinzas da justiça e da liberdade, após a queda do
bem e do mal. O mal não existe, todas as coisas são boas, dirá rejeitando Santo
Agostinho, contanto que, num giro da ética sobre a metafísica, o homem abandone
o papel de criatura e cinja a máscara do instrumento do universo. “Sendo
Humanitas a substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a
maior delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende:”...
(apesar dos flagelos) “não diminuiria o poder espiritual do homem sobre a
terra, inventada unicamente para seu recreio (dele), com as estrelas, as
brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss... não era tão tolo como o pintou
Voltaire” (M. P. , CXVII).
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis: A Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro, RJ.
3ª
edição. 1988.
domingo, 27 de janeiro de 2013
OS NOVOS INCONFIDENTES
APOSENTADORIA
(Cont.)
Odilon Fulgêncio da Rosa
Olavo França Sobreira de Carvalho
Oldack de Carvalho Neves
Oldemar Peixoto
Olegário Alves Mangueira
Olga Baeta Henriques
Olympio Nogueira da Silva Braga
Onfremon d’Amazonas Monteiro
Onofre Sebastião Gosuen
Ophir Pereira Mendes
Ori Vargas Fortes
Orlando Alves da Silva
Orlando Sampaio da Silva
Orley Gavião Gonzaga de Castro
Oscar Brandão Leal
Oscar Dutra Loureiro
Osman da Silva Buarque
Osman Matos de Souza
Osmar Cunha
Osmar de Almeida Flores
Osmar de Araújo Aquino
Osmar Dutra
Osmar Joaquim Soares
Osmar Paulo Dias Nunes
Osmar Ramos
Osório da Rocha Diniz
Oswaldo Claudiano da Silva
Oswaldo da Conceição
Oswaldo de Noronha
Oswaldo Evandro Carneiro Martins
Oswaldo Kléber Souza Azevedo
Oswaldo Rodrigues Martins
Oswaldo Scagliarini
Oswaldo Sinzó Shimabukuro
Otávio Alves de Brito
Othaniel de Carvalho
Othon Reis Fernandes
Otoniel de Araújo Goes
Otto Cezar
Ovídio Pinto de Lemos
Ozana Domingos de Paula
Padre Paulo Vieira Azevedo
Páris Ferreira de Souza
Pasqual Ruzzi
Paula Beiguelman
Paulo Alpheu Monteiro Duarte
Paulo Azeredo de Carvalho
Paulo Benício de Souza
Paulo Cunha Menezes
Paulo Ferreira Garcia
Paulo Frederico Homero
Paulo Garcia Reis
Paulo Gomes da Silva
sábado, 26 de janeiro de 2013
OS INCONFIDENTES
OS INCONFIDENTES
AUTO DE EXAME E SEPARAÇÃO FEITA NOS PAPÉIS APREENDIDOS
AO CORONEL DE AUXILIARES DA COMARCA DO RIO DAS MORTES, INÁCIO JOSÉ DE ALVARENGA
PEIXOTO.
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil
e setecentos e oitenta e nove, aos onze
dias do mês de junho do dito ano, nesta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto e Palácio da
residência do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena,
Governador e Capitão General desta Capitania, sendo aí presente o mesmo
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, e o Doutor Desembargador Pedro José
Araújo de Saldanha, Ouvidor Geral e Corregedor desta Comarca, junto comigo o
Bacharel José Caetano César Manitti, Ouvidor e Corregedor da do Sabará, Juiz e
Escrivão nomeados para esta diligência
por portaria do dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor; logo pelo mesmo nos
foi ordenado que víssemos e examinássemos todos os papéis que foram apreendidos
ao Coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto, e que direta ou indiretamente
pudessem de alguma sorte respeitar ao fim por que foram apreendidos, os quais
todos se achavam encerrados em uma caixa de pau pequena, que nos foi no mesmo
ato apresentada; e a qual abrimos; e depois de exata e miudamente examinados
todos os referidos papéis na presença do mesmo Excelentíssimo Senhor, dentre
eles se separaram os dois ao diante juntos e aqui autuados, por induzir o seu
conteúdo alguma suspeita relativa à presente diligência nas atuais circunstâncias;
contendo, o primeiro, parte de uma ode escrita pelo próprio punho do dito
Coronel Inácio José de Alvarenga; e o segundo um aviso a este, escrito da mesma
sorte e assinado pela mão do Vigário de São José, Carlos Correia de Toledo, que
ambos vão por mim rubricados; para sobre os mesmos se fazerem as averiguações
competentes, mandou o referido Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor praticar na
sua presença este auto de achada, exame, e separação dos sobreditos papéis, que
rubricou; e em que também assinou o referido Juiz , o Doutor Desembargador
Pedro José Araújo de Saldanha, comigo, Escrivão nomeado, o Bacharel José
Caetano César Manitti, que o escrevi e assinei.
Saldanha - José
Caetano César Manitti
Anexo 1:
Parte de uma Ode de Inácio José de Alvarenga
Segue dos teus Maiores,
Ilustre ramo, as sólidas pisadas.
Espalha novas flores
Sobre as suas ações grandes e honradas.
Abre, por tua mão, da glória o Templo;
Mas move o braço pelo seu exemplo.
A herdada Nobreza
Aumenta, mas não dá merecimento.
Dos heróis, a grandeza
Deve-se ao braço, deve-se ao talento,
E assim foi que, calcando o seu destino,
Deu leis ao mundo o cidadão de Arpino.
Abra-se à nova terra,
Para heróicas ações, um plano vasto.
Ou na paz, ou na guerra,
Orna os triunfos teus de um novo fasto:
Faze servir aos Castros, aos Mendonças,
Malhados tigres, marchetadas onças.
Não há bárbara fera
Que o valor e a prudência não domine
Quando a razão impera.
Que leão pode haver que não se ensine?
E o forte jugo, por si mesmo grave,
A doce mão que o põe o faz suave.
Pródiga, a Natureza
Fundou neste País o seu tesouro.
Que fez a Natureza
Em pôr neste País o seu tesouro?
Das pedras, na riqueza,
Nas grossas minas abundantes de ouro?
Se o povo miserável... mas que digo!
Povo feliz, pois tem o vosso abrigo.
Qual formada nos ares
Em densa nuvem, grossa tempestade
Qual, sobre os densos ares,
Horrenda tempestade levantada
Abre o seio dos mares
Para tragar a nau despedaçada;
Porém destro, o Piloto arreia o pano,
Salva o perigo, e remedeia o dano.
Assim a grande Augusta,
Que vê o mal, com ânimo paterno,
Em mão prudente e justa
Vem colocar as rédeas do governo.
Eu vejo a nau já do perigo isenta
Buscar o porto, livre da tormenta.
A vós, florente ramo,
Meus versos mal limados dirigia
Reconheço a letra retro e supra ser do próprio punho
do Coronel Inácio José de Alvarenga pelo
perfeito conhecimento que da mesma tenho. Vila Rica, 15 de junho de 1789.
José Caetano
Cér Manitti
ANEXO 2: — Bilhete do Vigário de São José, Carlos
Correia de Toledo, a Inácio José de Alvarenga Peixoto, escrito na casa do
Ten.-Cel. Francisco de Paula Freire de Andrada, na noite de 26-12-1788 em Vila
Rica.
Alvarenga,
Estamos juntos, e venha Vmcê. já, etc.
Amigo Toledo
Reconheço a letra supra e sobrenome Toledo ser do
Reverendo Vigário Carlos Correia de Toledo por ter de sua letra pleno
conhecimento, em fé do que passo a presente.
Vila Rica, a 15 de junho de 1789
Em testemunho (sinal
público do Tabelião) da verdade.
Antônio de
Oliveira e Sá
EMANUEL E FEDERICO
Secara,
e, de agora, desde os três anos, toda manhã, cada por dia, o Chico Carreiro
atrelava suas quatro juntas de bois, e desciam até às Pedras, o carro cheio de
latas, para buscar a água do usável. Sempre as crianças o acompanhavam; e, às
vezes, o velho Camilo.
Restavam
as duas filas de pequenas árvores, se trançando por cima da deixa do riacho,
formando escuro um tubo fundo, onde as porcas iam parir seus leitões e as guinés
punham ovos. Não se podia derrubar aquela linha de mato, porque, um dia quem
sabe, o riachinho podia voltar, sua vala ficava à espera, protegida. Mas, por
ora, quem descia à noite, do espigão, do alto campo — quando sabiam que o vento
não estava soprando no rumo de levar o cheiro deles ao faro dos cachorros —
eram a raposinha rouca e algum ouriço predador; esses se encontravam, caminho
em meio, com a miúda irara, zangada, e com o gambá-d’água, que subiam do
valezinho florestal do Córrego das Pedras, por sede do sangue quente das
criações do galinheiro. E, nas copas do arvoredo, as rolinhas fogo-apagou
pregueavam seus ninhos.
A
rola fogo-apagou cantava continuado, o dia, mesmo na calada do calor, quando
dormiam os outros pássaros. Seu canto sabe sempre se fingir de longe, e ela
está perto. Só a ser que deseje domesticar-se, mas lhe faltando um pouquinho
mais de valentia necessária, ou conhecendo que não a irão aceitar assim. A mãe
de Manuelzão gostava delas, das fogo-apagou. Gostava de todas as criaturas
inofensivas e vulneráveis — os meninos, a rolinha pedrês, o velho Camilo.
Por
mesmo, se soube que o velho Camilo, sem contar a ninguém, tinha ido rezar na
sepultura dela, levar flores , o que no comum nem era muita regra se fazer —
flores do campo, pencas douradas do pau-doce, e a do pacari, que é a mais linda
que tanto espanta, ou uns simples ramos de assapeixe, que agora em maio era
quadra de se abrirem, o rosado e o branco, por toda beira de estrada. Manuelzão
isso escutou, e no íntimo se agradara. Mas não o deu a entender, não disse
palavra. Sua laia de chefe não o consentia. Ele tinha de ser sério severo nos
exemplos. O velho Camilo podia estar com aquelas ações só por caduquice; os
outros, a boca-do-povo, podiam não achar decência naquilo, mexer maldade,
falario; alguém tinha sobra para dizer que o velho Camilo estivesse solando de
adulação, cada um caça e coça. Também ficava injusto aceitar com
reconhecimentos aquela lembrança, assim diante dos outros, que na labuta do
diário se cansavam, sem tempo nenhum para miudezas, enquanto que o velho Camilo
era apenas uma espécie doméstica de mendigo, recolhido, inválido, que ali viera
ter e fora adotado por bem-fazer, surgido do mundo do Norte:
—
Ele asseste mais é aqui. Às vezes descasca um milhozinho, busca um balde
d’água. Mas tudo na vontade dele. Ninguém manda, não...
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
José
Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª edição. 1956.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
Aí
alguém se aproximou dele e disse: “Mestre, que farei de bom para ter a vida
eterna?” Respondeu: “Por que me perguntas sobre o que é bom? O Bom é um só. Mas
se queres entrar para a Vida, guarda os mandamentos”. Ele perguntou-lhe:
“Quais?” Jesus respondeu: “Estes: Não
matarás não adulterarás, não
roubarás, não levantarás falso testemunho; honrarás teu pai e tua mãe, e amarás
o teu próximo como a ti mesmo”. Disse-lhe então o moço: “Tudo isso tenho
guardado. Que me falta ainda?” Jesus lhe respondeu: “Se queres ser perfeito,
vai, vende o que possuis e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois,
vem e segue-me”. O moço, ouvindo essa palavra, saiu pesaroso, pois era
possuidor de muitos bens.
Mt
19, 16-22
quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
A BÍBLIA SAGRADA
José
deu ordem de encher de trigo suas sacas, de restituir o dinheiro de cada um em
sua bolsa e lhes dar provisões para o caminho. E assim lhes foi feito. Eles
carregaram o mantimento sobre seus jumentos e se foram. Mas quando um deles, de
noite, no acampamento, abriu a saca de trigo para dar forragem a seu jumento,
viu que seu dinheiro estava na boca da saca de trigo. Ele disse a seus irmãos:
“Devolveram o meu dinheiro, eis que está na minha saca de trigo!” Então
desfaleceu-lhes o coração e se entreolharam tremendo e disseram: “Que é isto
que Deus nos fez?”
Voltando
para a casa de Jacó, na terra de Canaã, contaram-lhe tudo o que lhes sucedera. “O
homem que é senhor da terra,” disseram eles, “nos falou duramente e nos tomou
por espiões da terra. Nós lhe dissemos: ‘Somos sinceros, não somos espiões: nós
éramos doze irmãos, filhos de um mesmo pai; um de nós não existe mais e o mais
novo está agora com nosso pai, na terra de Canaã’. Mas o homem que é senhor do
país nos respondeu: ‘Eis mantimento de que necessitam vossas famílias e parti;
mas trazei-me vosso irmão mais jovem e saberei que não sois espiões, mas que
sois sinceros. Então eu vos devolverei vosso irmão e podereis circular na
terra.’”
Quando
eles esvaziavam suas sacas, eis que cada qual tinha em sua saca a bolsa de
dinheiro, e quando eles viram suas bolsas de dinheiro tiveram medo, eles e seu
pai. Então seu pai Jacó lhes disse: “Vós me privais de meus filhos: José não
existe mais, Simeão não existe mais e quereis tomar Benjamim: é sobre mim que
tudo isso recai!”
Mas
Rúben disse a seu pai: “Mata os meus dois filhos se eu não to restituir.
Entrega-mo e eu to trarei de volta!” Mas ele retrucou: “Meu filho não descerá
convosco: seu irmão morreu e ele ficou só. Se lhe suceder desgraça na viagem
que ireis fazer, na aflição faríeis descer minhas cãs ao Xeol.”
Gn
42, 25-38
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
O
que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a
européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista
encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua
economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram
ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a
flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é
que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do
Brasil, a formação sui generis da
sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos.
Vários
antecedentes dentro desse de ordem geral — bicontinentalidade, ou antes,
dualismo de cultura e de raça — impõem-se à nossa atenção em particular: um dos
quais a presença, entre os elementos que se juntaram para formar a nação
portuguesa, dos de origem ou estoque semita, gente de uma mobilidade, de uma
plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social como física que facilmente se
surpreendem no português navegador e cosmopolita do século XV. Hereditariamente
predisposto à vida nos trópicos por um longo habitat tropical, o elemento semita, móvel e adaptável como nenhum
outro, terá dado ao colonizador português do Brasil algumas das suas principais
condições físicas e psíquicas de êxito e de resistência. Entre outras, o
realismo econômico que desde cedo corrigiu os excessos de espírito militar e
religioso na formação brasileira.
A
mobilidade foi um dos segredos da vitória portuguesa; sem ela não se explicaria
ter um Portugal quase sem gente, um pessoalzinho ralo, insignificante em número
— sobejo de quanta epidemia, fome e sobretudo guerra afligiu a Península na
Idade Média — conseguido salpicar virilmente do seu resto de sangue e de
cultura populações tão diversas e a tão grandes distâncias umas das outras: na
Ásia, na África, na América, e numerosas ilhas e arquipélagos.A escassez de
capital-homem, supriram-na os portugueses com extremos de mobilidade e
miscibilidade: dominando espaços enorme e onde quer que pousassem, na África ou
na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos , numa atividade genésica que
tanto tinha de violentamente instintiva da parte do indivíduo quanto de
política, de calculada, de estimulada por evidentes razões econômicas e
políticas da parte do Estado.
Gilberto
Freyre
Casa-Grande & Senzala
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
DE DIANTE PRA TRÁS
O
senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo...
Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do
senhor, algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão?
Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que
vem do Céu. Eu sei.
Conforme
conto. Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo emendar nó
no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos
do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços,
reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo, dado ataque, mas que
não tivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava
recebendo socorro de outros — o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã
—: que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei de todo —
como no instante em que o trovão não acabou de rolar até ao fundo, e se sabe
que caiu o raio...
Diadorim
tinha morrido — mil-vezes-mente — para sempre de mim; e eu sabia, e não queria
saber, meus olhos marejaram.
—
“E a guerra?!” — eu disse.
—
“Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!... João Goanhá e o Fafafa, com
um dos nossos, ainda seguiram perseguindo os restos, derradeira demão...” —
João Concliz deu resposta. — “O Hermógenes está morto, remorto matado...” —
quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo... Havia nenhum
Hermógenes mais. Assim de certo resumido — do jeito de quem cravado com um rombo
esfaqueante se sangra todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca
de terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se quer rir — cara
sepultada... Um Hermógenes.
Nas
vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando: por tanto que, assim
tristonhamente, a gente vencia. Sobresseguida à doideira de mão-de-guerra na
rua, João Goanhá tinha carregado em cima dos bandidos deles que estavam dando
retaguarda, e com eles rebentado... Aquilo não fazia razão. Suspendi. Suspendi
minhas mãos. Vi que podia. Só o corpo me estivesse meio duro, as pernas
teimando em se entesar, num emperro, que às vezes me empalhava. Sendo que me
levantei, sustentando , e caminhei os passos; as costas para a janela eu dava.
Nesse
ponto, foi que o Alaripe e o Quipes vinham chegando. Notícia de Otacília me
dessem; eu custava a me lembrar de tantas coisas. Aqueles dois vinham alheios,
do que vinham, desiludidos da viagem deles:
—
“Era a vossa noiva não, Chefe...” — o que Alaripe relatava. — “o homem se
chamava só Adão Lemes, indo conduzindo a irmã dele, fazendeira, cujo nome é
Aesmeralda ... Iam de volta para suas casas... Os que, então, no Porto-do-Ci
deixamos, na barra do Caatinga...
Tanta
gente tinha o mundo... — eu pensei.
Tanta vida para a discórdia. Agradeci ao Alaripe, mas virei para os outros
nossos; perguntei:
—
“Mortos, muitos?”
—
“Demais...”
Isto
o João Curiol me respondeu, prestativamente, sistema de amigo. Solucei em seco,
debaixo do nada. Agora um me dizendo: que, com as ferramentas, uns estavam trabalhando
de abrir covas, revezados. Alaripe fez um cigarro, queria dar para mim; que
rejeitei. — “ É o Hermógenes?”— aí foi o que o Alaripe perguntou.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
POEMA
PARA CLÉLIA
Para
mim teu nome é alegria,
rosa,
estrela da manhã,
pássaro
de fogo, poesia.
Para
sempre vou ter este nome,
esta
rosa solar e vermelha,
esta
estrela de sangue, esta chama,
este
som que me traz de repente
este
choro, esta voz, esta flor,
este
gesto, este beijo, este riso,
tua
mão, teu olhar, tua cor.
No
meu mapa de rotas truncadas,
meu
roteiro de Ulisses perdido,
vou
traçar uma rosa-dos-ventos
(essa
flor de esperança e certeza):
Para
sempre quero teu nome,
rosa,
luz, pássaro de fogo,
para
sempre quero teu corpo,
para
sempre esta alma, este rosto,
este
porto seguro, este amor.
1982.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
OTELO E SANT'IAGO
OTELO
E SANT’IAGO
A
PROMESSA
Tão
depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo e corri à
varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter a
minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a
ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de
dezesseis anos.
Os
projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo,
se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada
a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz; cotava fazê-lo quando eu
entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentia o terror de
separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou
testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares.
Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender em
casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo
do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação
os faz infinitos. Minha mãe esperou que os anos viessem vindo. Entretanto,
ia-me afeiçoando à idéia da Igreja; brincos de criança, livros devotos, images
de santo, conversações de casa, tudo convergia para o altar. Quando íamos à
missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no
padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa brincava de missa — um tanto às escondidas,
porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um
altar Capitu e eu. Ela servia de sacristão, de alterávamos o ritual, no sentido
de dividirmos a hóstia entre nós; a hóstia era sempre um doce. No tempo em que
brincávamos assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: “Hoje há missa?”. Eu
já sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia
por outro nome. Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e
precipitávamos as cerimônias. Dominus,
non sum dignus... Isto que eu devia dizer três vezes, penso que só dizia
uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho nem água,
não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do sacrifício.
Ultimamente
não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser negócio findo.
Quinze anos, não havendo vocação, pediam antes o seminário do mundo que o de
São José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou
pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA
Economicamente,
a sociedade patriarcal fundava-se na monocultura, com todos os benefícios e
inconvenientes dela decorrentes; o que mais importa, entretanto, é que o
sistema realmente integrou o escravo
e o negro na sociedade brasileira, com a correspondente absorção, por parte
desta última, de tantos traços e complexos culturais originalmente africanos.
Nesse, e em livros posteriores, Gilberto Freire exalta a maleabilidade com que
o português se adaptou aos trópicos, criando uma civilização original a partir
de sugestões naturais e sociais que lhe eram oferecidas, em lugar de procurar
substituí-las a todo custo por seus próprios valores de europeu. Isso não
ocorreu, entretanto, por parte dos jesuítas, cujos métodos de catequese e
civilizamento ele critica. A destruição sistemática ou involuntária das
culturas indígenas (e dos próprios índios) explica-lhes a influência muito
menor na formação e desenvolvimento da sociedade brasileira; Casa Grande & Senzala destruía,
assim, implicitamente, um dos mitos românticos mais tenazes e idealizantes, da
mesma forma por que destruiu o antimito que era a subestimação do negro
enquanto fator da civilização brasileira.
O
livro, como se sabe, tornou-se instantaneamente um clássico dos nossos estudos
sociais e exerceu influência literalmente incalculável; pode-se dizer, sem
exagero, que ele modificou as nossas estruturas mentais, forçou-nos a pensar de maneira diferente. Mesmo
aqueles que , no todo ou em parte, se recusam a aceitar-lhe as observações, a
metodologia e as conclusões, expressas ou tácitas, foram por ele influenciados
e tiveram, malgrado seu, de encarar a nossa história social em perspectivas até
então desconhecidas. Essa enorme e insubstituível contribuição para a nossa
vida intelectual é desprezada com alguma ligeireza pelos especialistas mais
recentes que já começaram, aqui e alhures, o processo de “revisão” de Gilberto
Freire.
Nesse
mesmo ano de 1933, ele promoveu no Recife o 1º Congresso Afro-Brasileiro, ponto
de partida para o extraordinário desenvolvimento dos estudos negros na década
de 30, desde logo testemunhado pelos volumes então publicados: A Escravidão Africana no Brasil, de
Evaristo de Morais; O Elemento Afro-Negro
na Língua Portuguesa, de Jacques Raimundo; A Influência Africana no Português do Brasil, de Renato Mendonça,
com segunda edição em 1935, e, mesmo, Esse
Jorge de Lima..., por Benjamim Lima, biografia de um poeta já então célebre
por seus poemas negros. O “português do Brasil era objeto do livro de Xavier Marques,
A Cultura da Língua Nacional; no
campo dos estudos indígenas podem-se mencionar as Primeiras Noções de Tupi, de Plínio Airosa, e os Ensaios de Antropologia Brasiliana, de
Roquette-Pinto.
A
revolução mental do Modernismo começava claramente a produzir resultados, sendo
Casa Grande & Senzala uma das
suas obras mais representativas; o interesse pelos estudos brasileiros e pelo
desenvolvimento sistemático da cultura reativou a idéia de criação da
Universidade de São Paulo, cujos planos começaram a ser delineados em dezembro
desse ano. O problema, é evidente, inscrevia-se num contexto mais largo,
abordado por Miguel Couto no opúsculo No
Brasil só há um Problema Nacional — a Educação do Povo, dedicado às
questões de ensino e saúde. Ele evoca o exemplo do Japão, cujo extraordinário
êxito mundial devia-se, antes de mais nada, à educação do povo; assim,
Ou o Brasil a encara (a ignorância) como
uma calamidade nacional e lhe acode com o socorro imediato ou estará
irremediavelmente batido na concorrência com as nações cultas.
Wilson
Martins
História
da Inteligência Brasileira
vol.
VII (1933-1960)
Cultrix.
Edusp. São Paulo, SP.
1ª
edição. 1979.
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
PANEM NOSTRUM
CANÇÃO
DA FORMOSURA
Vinho
de sol ideal canta e cintila
Nos
teus olhos, cintila e aos lábios desce,
Desce
à boca cheirosa e a empurpurece,
Cintila
e canta após d’entre a pupila.
Sobe,
cantando, à limpidez tranqüila
Da
tu’alma estrelada e resplandece
Canta
de novo e na doirada messe
Do
teu amor, se perpetua e trila...
Canta
e te alaga e se derrama e alaga...
Num
rio de ouro, iriante, se propaga
Na
tua carne alabastrina e pura.
Cintila
e canta, na canção das cores,
Na
harmonia dos astros sonhadores,
A
Canção imortal da Formosura!
Cruz
e Sousa
Broquéis
Edusp.
São Paulo, SP.
1994.
G. RAMOS
Lembro-me
perfeitamente da cena. O gabinete pequeno se transformara numa espécie de loja:
montes de fazenda e cadernos, que oferecíamos às crianças pobres. Findo o
expediente, sucedia retardar-me ali, a escrever, esquecia-me do tempo, e às
vezes, meia-noite, o guarda vinha dizer-me que iam fechar o portão do palácio.
Parte do meu último livro fora composto no bureau largo, diante de petições, de
números do Literatura Internacional.
Naquela noite, acanhado, olhando pelas janelas os canteiros do jardim, as
árvores da praça dos Martírios, Rubem me explicava que Osman Loureiro, o
governador, se achava em dificuldade: não queria demitir-me sem motivo, era
necessário o meu afastamento voluntário. Ora, motivo há sempre, motivo se
arranja. Evidentemente era aquilo início de uma perseguição que Osman não podia
evitar: constrangido por forças consideráveis, vergava; se quisesse resistir,
naufragaria. Não presumi que nele houvesse perfídia. Sempre se revelara
razoável, nunca entre nós houvera choque. Provavelmente se perturbava como eu.
Conversei com Rubem, sem melindres, revolvendo as gavetas, procurando papéis
meus. Os integralistas serravam de cima, era o diabo. Demissão ninguém me
forçaria a pedir. Havia feito isso várias vezes, inutilmente; agora não iria acusar-me.
Dessem-me de qualquer jeito, por conveniência de serrviço.
Despedi-me
de Rubem Loureiro e deixei sobre o bureau os volumes do Literatura Internacional. Essa matéria, na safadeza e na burrice
dominantes naquela época, render-me-ia talvez um processo. Iriam dr. Sidrônio e
Luccarini, meus companheiros de trabalho, passar vexame por minha causa? Não.
Dr. Sidrônio era católico, não escrevia, como eu, livros perigosos nem se
gastava em palestras inconvenientes nos cafés. Provavelmente me substituiria. Luccarini
tinha sido meu inimigo. Apanhado certa vez em falta e censurado, replicara-me:
— Eu
também já mandei. Mas quando queria dizer isso que o senhor está dizendo,
chamava o sujeito particularmente.
—
Ora essa! O senhor chega tarde, larga a banca e vive passeando pelas seções
alheias em público.
Luccarini
voltara ao seu lugar e durante três meses fora de uma pontualidade irritante.
Era o primeiro a chegar, o último a sair, não se levantava nem para ir ao
mictório. Também não fazia nada, inércia completa. Na rua, se me via, fechava a
cara, enrugava-se com dignidade excessiva. Isso não tinha importância, mas o
procedimento na repartição irritava-me.
—
Como vai Luccarini? perguntava Osman.
—
Pessimamente . É um preguiçoso.
Osman
contradizia-me e gabava aquela inutilidade. Não me conformava. E dera graças a
Deus quando Luccarini se ausentara, passara seis meses no Recife, curando uma
sinusite, com todos os vencimentos. Ao voltar, agradecera-me um obséquio não
feito, apresentara-me um relatório não encomendado, insinuara-me a compra de um
fichário e o abandono daqueles horríveis calhamaços onde o registro das
professoras se fragmentava e confundia. Agora trabalhava demais, em poucos
meses corrigira aquela balbúrdia.
Saí
do palácio, atordoado. Eximia-me de obrigações cacetes, mas isso continuava a
aperrear-me, juntava-se a amolações domésticas e a planos vagos. Sentia
desgosto e vergonha, desejava ausentar-me para muito longe, não pensar em
despachos e informações. Andei pelas ruas, tomei o bonde. Transeuntes e
passageiros pareciam conhecer o desagradável sucesso, ler-me no rosto a
inquietação. Evitava considerar-me vítima de uma injustiça: deviam ter razão
para repelir-me. Seria bom que ela se publicasse no jornal, isto desviaria
comentários maliciosos. Esforçava-me por julgar aquilo uma insignificância. Já
me havia achado em situação pior, sem emprego, numa cama de hospital, a barriga
aberta, filhos pequenos, o futuro bem carregado. Tinha agora uns projetos
literários, indecisos. Certamente não se realizariam, mas anulavam desavenças
conjugais intempestivas, que se vinham amiudando e intensificando sem causa. A
lembrança dessas querelas, somada aos telefonemas e à demissão, azedou-me a
viagem a Pajuçara. Indispensável refugiar-me no romance concluído, imaginá-lo
na livraria, despertando algum interesse, possibilitando ainda uma vez mudança
de profissão. A última, encerrada meia hora antes, tinha sido um horror: o
regulamento, o horário, o despacho, o decreto, a portaria, a iniqüidade, o
pistolão, sobretudo a certeza de sermos uns desgraçados trambolhos, de quase
nada podermos fazer na sensaboria da rotina. Se não me houvessem despedido
assim de chofre, com um recado, humilhantemente, poderia até julgar aquilo um
benefício.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume – Viagens.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.
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