sexta-feira, 30 de novembro de 2012
quinta-feira, 29 de novembro de 2012
HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA
Ao
Brasil profano e histórico dessas obras correspondia o Brasil místico e mítico
da Atlântida, epopéia cósmica de
Dario Veloso, concluída em 1933, embora só cinco anos mais tarde fosse
postumamente publicada. Trata-se da nossa epopéia nacional, e faltou-lhe apenas
a espessura de um cabelo, escrevia eu a 5 de setembro de 1970 para situar-se no
mesmo plano de tantos outros poemas legendários de que se orgulham escandinavos
e hindus, hispano-americanos ou poloneses — e mesmo franceses. A Atlântida deve ser lida nas perspectivas
das demais epopéias românticas que, segundo a bela síntese de Léon Celeiro, são
humanitárias e religiosas. Otimistas, crêem no futuro da Humanidade; sabem que,
se os deuses morrem, acabam sempre por ressuscitar; anunciam, como Victor Hugo,
o fim de Satã. O épico para uma epopéia moderna é a evolução do progresso
humano; nisso, os simbolistas, como Dario Veloso, confundiam-se paradoxalmente
com os Enciclopedistas nas mesmas aspirações e ideais; a recíproca, aliás, é
verdadeira, porque a idade da Enciclopédia,
na aguda observação de Herbert J. Hunt, “é a idade dos curandeiros,
profetas, convulsionários — e
charlatães. É também a idade dos maçons, da teosofia e do iluminismo” — tudo
confluindo paradigmaticamente na obra de Dario Veloso. De fato, Herbert J. Hunt
reportava-se ao juízo de Chateaubriand, no Gênio
do Cristianismo, só restavam aos tempos modernos dois belos assuntos de
epopéia, as Cruzadas e a Descoberta do Novo Mundo. Lembremos, a propósito do
poema brasileiro, que, desd 1812, Népomucène Lemercier (1771-1840) havia feito
da destruição do continente mítico o tema do poema Atlantide ou la Théogonie newtonienne.
Em
Dario Veloso, a concepção central do poema consistiu em substituir, seja a
mitologia clássica, sejam as lendas nacionais, pelas concepções iniciáticas,
assim inscrevendo as origens do Brasil não no plano humano e histórico em que
afinal todas as epopéias convencionais desembocam, mas no plano mais alto do
universo estelar. No glossário do poema, ele classificava desta maneira a noção
do “Ciclo brasileiro”:
Com a chegada dos Lusos (1500) a cadeia
da Atlântida interrompida desde a submersão de Poseidonis, toca seus últimos
elos, impercebidamente. Volve ao Brasil bruxuleante vestígio da Tradição
atlante-ibera. — O Brasil tem por missão histórica espargir no Orbe
ensinamentos pacifistas, homogeneizando as Raças humanas, formando o tipo
sintético da Espécie. No próximo século
iniciar-se-á o Ciclo do Brasil.
Na
sua cosmogonia, Dario Veloso adota a idéia de A. Sergipe quanto às origens do
Homem na raça negra:
A Raça de azeviche que, primeira
Da espécie humana, o Globo dominou (...)
a
concepção do poema sendo que, com o desaparecimento de Poseidonis, última ilha
da Atlântida, salvam-se um sábio e dois discípulos; aportando no Brasil
aliam-se ao Tamoio da Guanabara e levam finalmente a palavra sagrada até aos
Incas do Peru. Eis a chegada ao Brasil, elo predestinado na obra civilizadora
da Atlântida:
Mais perto a terra do Brasil verdeja...
Antes da noite chegaria à plaga
O frágil lenho que no mar veleja.
Há no ambiente aroma que embriaga,
A carícia da terra donairosa,
A
canção das palmeiras sobre a vaga.
— Que te pode igualar, Terra ditosa?!
(.............................................................)
Acentua-se a curva da baía...
— Guanabara! — a mais linda do Universo!
Perene a primavera, a noite um dia;
Estelário do Eterno em linfa imerso.
Os
peregrinos partem, afinal, para o Peru através da Amazônia, “Canaã que ainda
espera seu povo”, dizia Alfredo Ladislau em Terra
Imatura, em linguagem não menos carregada de misticismo. Foi ele que lançou
a idéia da “cobiça internacional”, destinada a popularidade que se conhece:
Diante desta grande milionária,
permanecemos como usurários desprezíveis, sem o ânimo de usufruí-la,
consentindo, todavia, na espoliação dos seus tesouros nativos, mau grado o
constante receio de que ela nos seja, um dia, arrebatada por uma raça qualquer,
mais poderosa e apta a dar-lhe todo o progresso que ela merece.
Wilson
Martins
História
da Inteligência Brasileira
vol.
VII (1933-1960)
Cultrix.
Editora da Universidade de São Paulo.
São
Paulo, SP.
1978.
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
PANEM NOSTRUM
SONHO
BRANCO
De
linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho
virgem que cantas em meu peito!...
És
do Luar o claro deus eleito,
Das
Estrelas puríssimas nascido.
Por
caminho aromal, enflorescido,
Alvo,
sereno, límpido, direito,
Segues,
radiante, no esplendor perfeito,
No
perfeito esplendor indefinido...
As
aves sonorizam-te o caminho...
E
as vestes frescas, do mais puro linho
E
as rosas brancas dão-te um ar nevado...
No
entanto, ó Sonho branco de quermesse!
Nessa
alegria em que tu vais, parece
Que
vais infantilmente amortalhado!
Cruz
e Sousa
Broquéis
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
G. RAMOS
E
aqui chego à última objeção que me impus. Não resguardei os apontamentos
obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui
obrigado a atirá-los. Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda
irreparável? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se
ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada instante,
mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas
demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das
folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes,
tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa
isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram,
deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco.
Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável
mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. Em conversa
ouvida na rua, a ausência de algumas sílabas me levou a conclusão falsa — e
involuntariamente criei um boato. Estarei mentindo? Julgo que não. Enquanto não
se reconstituírem as sílabas perdidas, o meu boato, se não for absurdo,
permanece. e é possível que esses sons tenham sido eliminados por brigarem com
o resto do discurso. Quem sabe se eles aí não se encaixaram com intuito de
logro? Nesse caso havia conveniência em suprimi-los, distinguir além deles uma
verdade superior a outra verdade convencional e aparente , uma verdade expressa
de relance nas fisionomias. Um sentido recusou a percepção de outro, substituiu-a.
Onde estará o erro? Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento,
exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças
diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se,
completam-se e não dão hoje impressão de realidade. Formamos um grupo muito
complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de
recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham
relevo, a ação começa. Com esforço desesperado arrancamos de cenas confusas
alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam. De que modo reagiram os
caracteres em determinadas circunstâncias? O ato que nos ocorre, nítido,
irrecusável, terá sido realmente praticado? não será incongruência? Certo a
vida é cheia de incongruências, mas estaremos seguros de não nos havermos
enganado? Nessas vacilações dolorosas,
às vezes necessitamos confirmação, apelamos para reminiscências alheias,
convencemo-nos de que a minúcia discrepante não é ilusão. Difícil é sabermos a
causa dela, desenterrarmos pacientemente as condições que a determinaram. Como
isso variava em excesso, era natural que variássemos também, apresentássemos
falhas. Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma,
sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus
defeitos as sombras dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo
ter-me revelado com freqüência egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de
sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir naquele ano
terrível.
Desgosta-me
usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem; fala um sujeito mais ou
menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante,
embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me
facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário.
Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei
prudente por detrás dos que merecem patentear-se.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. Viagens.
(obra
póstuma).
José
Olympio. Rio de Janeiro, 1953.
sábado, 24 de novembro de 2012
GR
DOM
RIOBALDO DO URUCUIA, CAVALEIRO DOS CAMPOS GERAIS
“...Este havia dar cima aas maravilhosas
aventuras do regno de Logres.”
(Demanda do Santo Graal II, 18)
Se
há necessidade de classificação literária para Grande Sertão: Veredas, não há dúvida que se trata de uma epopéia.
Preferimos não gastar palavras com argumentação que nos levaria longe, embora
com margem dadivosa para demonstrações comparativistas. Algumas anotações de
natureza didática, somente para não afirmar sob palavra, podem justificar desde
logo a classificação. Deixando de lado as qualidades orgânicas de unidade de
ação e de interesse, comuns a qualquer obra literária, Riobaldo é um verdadeiro
protagonista, até no sentido etimológico do termo, sempre o primeiro nos
combates, como homem que atira bem. “Senhor atira bem, porque atira com o
espírito. Sempre o espírito é que acerta...” como dizia Alemão Vupes.
A
intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função
adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece freqüentemente; desde
logo, podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do Joé
Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antônio Dó
atacando o porto de São Francisco.
Aliás,
por esta característica, os próprios contos e novelas de Guimarães Rosa,
entremeados de episódios, são épicos em grande número. O do touro Calundu, o do
negrinho cujo canto fez estourar a boiada, em “O Burrinho Pedrês”; o do sapo e
do cágado na “Volta do Marido Pródigo”; do Bento Porfírio, em “Minha Gente”; o
do “Quem Será”, em “São Marcos”, todos em Sagarana,
e ficando apenas numa parte do livro, o episódio de Maria Mutema, este no Grande Sertão: Veredas, é um verdadeiro
conto incrustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento
da ação, prolongando o interesse da narrativa.
Voltemos
ao fio da classificação. O ponto nodal é o julgamento de Zé Bebelo, quando,
conseguido o equilíbrio das forças adversárias (jagunços contra governo)
deveria findar totalmente o interesse do enredo. Entretanto, a morte de Joca
Ramiro, herói secundário, desata novamente a ação que, daí por diante, se
desencadeia, em plano diferente até a morte de Diadorim, com a justificação do
sentido etimológico do nome do herói: Rio-Baldo.
Pelas
características que tentaremos pôr em evidência, o tema é, evidentemente, material
de filiação popular. Jean Superville, falando da epopéia erudita, diz que ela
“nasce completa do cérebro de um poeta, como Minerva, armada, do cérebro de
Júpiter”. Aparte o pedantismo da imagem e o risco de pensarem que ameaço fazer
de Guimarães Rosa um novo Tonante, quero aproveitar o símile, como ajutório do
que vou expor:
O
cangaceiro, como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre
folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo — o
romance de cavalaria, já tem sido apontado, inclusive, pelo autor deste ensaio.
Pois
bem, esse Riobaldo é uma estilização da imagem convencional que o povo
estabeleceu para seus heróis.
Que
não houve, apenas, paráfrase de uma lenda, é evidente. Mas o tipo cavalheiresco
de Riobaldo despertou, associativamente, no acervo de impressões de leitura do
autor, ressonâncias que acabaram por sintonizar até os componentes do romance,
onde se pode rastrear uma propensão arcaizante de efabulação, com reflexos no
próprio vocabulário.
Riobaldo
começa menino sem pai, tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas,
que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe
indiscutido,embora não pressentido pelos que o cercam. ( Exceto por Diadorim,
que logo adivinha).
Cangaceiro
cortês, se não se repelem os vocábulos, Riobaldo não comete barbaridades, não
consegue cometê-las, apesar da tentação de fazê-lo, com o pobre sertanejo da
égua e da cachorrinha, ou com o leproso trepado na árvore (tal e qual aquela
moura, filha de leproso do “comance-velho” da Enfeitiçada — “homem que a mim se chegasse, malato se tornaria”).
Riobaldo não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os
“judas”. Muito folcloricamente, procura o equilíbrio social e tem rasgos de
bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no
casebre miserável.
Como
nos “romances-velhos”, Diadorim propõe, e ele jura cumprir, voto de castidade,
porque “senvergonhice e airado avejo servem só para tirar da gente o poder da
coragem”. Era a “regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem”, o jagunço, mas o fora,
antes, de Nun’Álvares Pereira que já imitava nesse ponto o patrono Dom Galaaz.
Os
chefes sertanejos guardam traços medievais
“Medeiro
Vaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda,
circunspecto, com todas as velhices, sem nem velho ser”, era “homem sobre o
sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o
projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia
a confiança da obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia baixa, ele
era dono do dia e da noite — que quase não dormia mais: sempre se levantava no
meio das estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas
boas botas de caitetu, tão antigas. Se ele em honrado Juízo achasse que estava
certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o
sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas”.
“Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor não mais não vê. Ele tinha
conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se
compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que
fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Tenente nos gerais —ele era.” Não é
Carlos Magno em gibão de couro?
Talvez
a figura de Rolando se ajuste em Joca Ramiro, montado em cavalo branco feito um
São Jorge. Vale a pena transcrever o trecho em que Riobaldo o apresenta: “E
Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco — cavalo que me olha de
todos os altos. Numa sela bordada de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As
rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos
ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor?
Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito.
Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. A gente tinha até medo de que,
com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse,
cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em
lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que
continuava.” E, em outro passo, evocando o chefe morto: “Joca Ramiro, tão
diverso e reinante que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já
estivesse constando de falecido.”
M.
Cavalcanti Proença
Trilhas
no Grande Sertão
Os
Cadernos de Cultura 114
Ministério
da Educação e Cultura.
Rio
de Janeiro. 1958.
sexta-feira, 23 de novembro de 2012
MACHADO
DOM
CASMURRO E O LEITOR LACUNAR
Em
Dom Casmurro, a figura do leitor
passa a incluir também o risco da interpretação inerente ao processo de
leitura, e o lugar que lhe é prescrito torna-se mais ambíguo do que em qualquer
dos romances anteriores . Desta vez o leitor é explicitamente convocado a
participar do processo literário na condição de intérprete, completando lacunas, tirando conclusões e fazendo
julgamentos do que lhe é relatado. Enquanto em Brás Cubas e Quincas Borba
o tom jocoso da narração convida ao distanciamento em relação aos fatos
narrados, em Dom Casmurro a nostalgia
melancólica apela à empatia do leitor. Ao mesmo tempo em que o narrador Bento
Santiago procura convencer-nos da sua versão do ocorrido, ele vai deixando pelo
caminho falsas pistas que possibilitam explicações divergentes das suas, constituindo-se
em iscas para enredar o leitor no campo ficcional. Para isso, como bem observou
Silviano Santiago em “Retórica da Verossimilhança” o leitor é colocado no
centro da arena de discussão, já que persuadir é um dos principais interesses
da prosa de Dom Casmurro. Mas o
processo de convencimento e persuasão não quer fazer com que o leitor evolua no
seu modo de pensar ou de encarar os problemas, mas sim fornecer-lhe matéria
para que ele se convença a si próprio, a partir dos seus próprios conceitos e
preconceitos. Daí a centralização do motivo do discurso estar não no
discernimento do orador casmurro, mas no de quem escuta, em última análise
responsável por completar e dar sentido à narração.
Ao
apelo por uma identificação negativa com Brás Cubas e, em certa medida, com
Rubião, sucede a procura não de identificação, mas de uma espécie de adesão do
interlocutor ao processo da narração. O narrador procura seduzi-lo de modo a
torná-lo não apenas cúmplice, mas co-autor da narração, forçando-se a aproximação
entre as instâncias da narração e da interlocução. Diferentemente do que ocorre
nos dois romances anteriores, as objeções ao leitor desta vez não se manifestam
pelo confronto direto, mas aparecem incorporadas ao modo ambíguo do relato. É
como se a tessitura do texto se alargasse e as fissuras — contradições,
omissões, emendas, lacunas — construíssem um espaço, digamos, interno, capaz de
abrigar leituras discordantes entre si, variáveis em função das projeções que o
leitor empírico faz dos seus próprios valores e crenças sobre o texto
radicalmente ambíguo do romance.
Hélio
de Seixas Guimarães
Os
Leitores de Machado de Assis
o
romance machadiano e o público de literatura
no
século 19
Nankin
Editorial. Edusp (Editora da Universidade
de
São Paulo). São Paulo, SP. 2004.
OS NOVOS INCONFIDENTES
APOSENTADORIA (cont.)
José
Torquato da Silva
José
Vieira Netto
José
Yapony Galvão
Josezito
Moura do Amaral Padilha
Joviano
Rincon Segóvia
Júlia
Vaena Steinbruch
Júlio
Barbosa
Júlio
de Almeida Pimentel
Júlio
Furquim Sambaquy
Júlio
Puddles
Jurandir
Ferreira Alves
Justiniano
da Silva Neves Neto
Lacides
Vanderley da Silveira Cáurio
Laércio
Wilson Barbalho
Laerte
José de Paiva
Laís
Loureiro Alves
Lauro
de Almeida Aparício
Lauro
de Oliveira Lima
Lauro
Hagemann
Lenito
Câncio de França
Léo
de Almeida Neves
Leo
Rodrigues de Almeida
Leon
Naves Barcelos
Leôncio
Carolino de Jesus
Leonel
Jarto Severo
Leonel
Júlio
Leônidas
Rangel Xausa
Leopoldo
Virtude Bogea
Lincoln
Bicalho Roque
Lits
da Silva Amaral
Lizandro
Vieira da Paixão Loureiro de Moraes
Lourival
Vilela Viana
Lucas
Buzeti
Luciano
Costa Reis
Luciano
José Moriva
Lucila
Santos Sasso
Luiz
Alves Silva
Luiz
Antônio Florambel Pinto Peixoto
Luiz
Belo Soares
Luiz
Bica de Alencastro
Luiz
Canani Pereira
Luiz
Carlos de Oliveira Júnior
Luiz
Carlos Dias
Luiz
Carlos Fiber do Nascimento
Luiz
Carlos Gama
Luiz
Carlos Pinheiro Machado
Luiz
Carlos Vitor Pujol
Luiz
Correia de Souza
Luiz
Cruz
Luiz
da Costa Fonseca
Luiz
da Costa Leal
Luiz
da França Costa Lima Filho
Luiz
de Andrade Lima
Luiz
Fernando Corona
Luiz
Fernando Gomes da Silva
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
OS INCONFIDENTES
Auto de exame, achada, e separação feita
nos papéis apreendidos ao Tenente-Coronel Domingos de Abreu Vieira.
Ano
do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e oitenta e
nove, aos vinte e seis dias do mês de maio do dito ano, nesta Vila Rica de
Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto e casas de morada do Tenente-Coronel
Domingos de Abreu Vieira, onde foi vindo o Doutor Desembargador Pedro José
Araújo de Saldanha, Ouvidor Geral de Corregedor desta Comarca, Juiz nomeado
para a presente diligência, comigo o Bacharel José Caetano César Manitti,
Ouvidor e Corregedor da do Sabará, também nomeado Escrivão da mesma, ambos por
Portaria do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena,
Governador e Capitão General desta Capitania, e sendo aí, por ele dito
Ministro, foram miúda e exatamente examinados todos os papéis e
correspondências que se encontraram que se acharam do referido tenente-coronel,
a fim de se averiguar se entre eles aparecia algum que fosse suspeitoso, ou que
direta ou indiretamente respeitasse ao fim por que se mandou proceder a
presente diligência, tudo por ordem do dito Ilustríssimo e Excelentíssimo
Senhor constante da Portaria junta; e praticado efetivamente o mencionado
exame, entre os ditos papéis e correspondências se encontraram as duas cartas
ao diante juntas e aqui autuadas, escritas ambas do Arraial do Tejuco, Comarca
do Serro do Frio, ao dito tenente-coronel pelo Padre José da Silva e Oliveira
Rolim; a primeira datada de trinta de março; e a segunda de vinte de abril do
corrente ano; achando-se nas costas das mesmas lembrança escrita do tempo do
seu recebimento e respostas, cujas cartas vão por mim rubricadas, e porque as
mesmas se fazem pelo seu conteúdo muito suspeitosas, para sobre elas se
proceder às averiguações competentes, mandou o dito Ministro separá-las e de tudo, para assim constar, fazer este
auto de exame, achada e separação, em que assinou comigo, Escrivão nomeado; e
eu, o Bacharel José Caetano César Manitti, o escrevi e assinei.
Saldanha — José Caetano César Manitti
terça-feira, 20 de novembro de 2012
EMANUEL E FEDERICO
Aqui
era umas araraquaras. A Terra do Boi Solto. Chegaram, em mês de maio, acharam,
na barriga serrã, o sítio apropriado, e assentaram a sede. O que aquilo não
lhes tirara, de coragens de suor! Os currais, primeiro; e a Casa. Ao passo que
faziam, sempre cada um deles recordava o modo de feitio de alguma jeitosa
fazenda, de sua terra ou de suas melhores estradas, e o queria remedar, com o
pobre capricho que o trabalho muito duro dá desejo de se conceber; mas, quando
tudo ficou pronto, não se parecia com nenhuma outra, nas feições, tanto as
paragens do chão e o desuso do espaço sozinho têm seu ser e poder. Daí,
esperaram as grossas chuvas. Era a Casa, grada, com muitos cômodos de chão
batido e só um quarto de assoalho; em dado não passava, bem dizer, de uma
casa-rancho, mas com teto complexo, de madeiras, por sobrecima as talas e
palmas de buriti. A rebaixa — um alpendre cercado — ; o rancho de
carros-de-boi; outros ranchos; outras casinhas; outros rústicos pavilhões.
Contiguavam-se os currais, ante esse conjunto, dele distanciados por um pátio e
pelo eirado, largoso, limpo de vegetação, porque o gado nele malhava, seu
pisoteio impedindo-a. Ali e no pátio, onde os homens e animais formavam convivência,
algumas árvores mansas foram deixadas — gameleiras, tinguis com frutas partas
maiores que laranjas, e cagaiteiras, ora em flor. Os longos cochos, nodosos,
cavados em irregulares troncos, ficavam à sombra delas. Enquanto os bois
comiam, as florinhas e as folhas verdes caíam no sal.
João
Guimarães Rosa
Corpo
de Baile – 1º volume
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
domingo, 18 de novembro de 2012
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
Nesse
tempo, chegaram-se a Jesus fariseus e escribas vindos de Jerusalém e disseram:
“Por que os teus discípulos violam a tradição dos antigos? Pois que não lavam
as mãos quando comem”. Ele respondeu-lhes: “E vós, por que violais o mandamento
de Deus por causa de vossa tradição? Com efeito Deus disse: Honra pai e mãe e Aquele que maldisser pai
ou mãe certamente deve morrer. Vos, porém, dizeis: Aquele que disser ao pai
ou à mãe: Aquilo que de mim poderias receber foi consagrado a Deus, esse não
está obrigado a honrar pai ou mãe. E assim invalidastes a Palavra de Deus por
causa da vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito,
quando disse.
Este povo me honra com os lábios,
mas o coração está longe de mim.
Em vão me prestam culto,
pois o que ensinam são apenas
mandamentos humanos.”
Mt
15, 1-9
sábado, 17 de novembro de 2012
A BÍBLIA SAGRADA
Então
o Faraó falou assim a José: “Em meu sonho, parecia-me que estava de pé na
margem do Nilo. Eis que subiram do Nilo sete vacas bem cevadas e de bela
aparência, que pastavam nos juncos. Mas eis que outras sete subiram depois
delas, extenuadas, de aparência feia e mal alimentadas, jamais vi tão feias em
toda terra do Egito. As vacas magras e feias devoraram as sete primeiras, as
vacas gordas. E depois que as devoraram, não demonstravam tê-las devorado,
porque sua aparência permanecia feia quanto
no início. Então acordei. Depois vi em sonho sete espigas subindo de uma mesma
haste, cheias e belas. Mas eis que sete espigas secas, mirradas e queimadas
pelo vento oriental, nasceram depois delas. E as espigas mirradas devoravam as
sete espigas belas. Eu narrei isso aos magos, mas não há ninguém que me dê a
resposta.
José
disse ao Faraó: “O Faraó teve apenas um sonho: Deus anunciou ao Faraó o que vai realizar. As sete vacas belas representam
sete anos , é um só e mesmo sonho. As sete vacas magras e feias que sobem em
seguida representam sete anos e também as sete espigas mirradas e queimadas
pelo vento oriental: é que haverá sete anos de fome. É como eu disse ao Faraó;
Deus mostrou ao faraó o que vai realizar: eis que vêm sete anos em que haverá
grande abundância em toda a terra do Egito; depois lhes sucederão sete anos de
fome, e se esquecerá toda a abundância na terra do Egito; a fome esgotará a
terra, e não mais se saberá o que era a abundância na terra, em face dessa fome
que se seguirá, pois ela será duríssima. E se o sonho do Faraó se repetiu duas
vezes, é porque o fato está bem decidido da parte de Deus e Deus tem pressa em
realizá-lo.
Agora,
que o Faraó escolha um homem inteligente e sábio e o estabeleça sobre a terra
do Egito. Que o Faraó aja e institua funcionários na terra, tome a quinta parte
dos produtos da terra do Egito durante os sete anos de abundância, e eles
reúnam todos os víveres desses bons anos que vêm, armazenem o trigo sob a
autoridade do Faraó, coloquem todos os víveres nas cidades e os guardem. Esses
víveres servirão de reserva à terra para os sete anos de fome que se abaterão
sobre a terra do Egito, e a terra não será exterminada pela fome.
Gn,
41, 17-36
quinta-feira, 15 de novembro de 2012
DE DIANTE PRA TRÁS
Mas,
então, quando se estava de volta m’embora vindo, peguei uma inesperada
informação, na Barra do Abaeté. De Zé Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por
que foi, que com aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando légua para
cima, perto do São Gonçalo do Abaeté, no Porto-Passarinho. Me fiz para lá. E
como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado em Zé Bebelo? Trote
tocamos, viemos, beirando aquele rio. O senhor sabe — o rio Abaeté, que é
entristecedor audaz de belo: largo tanto, de morro a morro. E em minha vida eu
já pensava.
Zé
Bebelo gritou — Safa! Safas!...” — e me abraçou como amigo cordial, contente de
muito me ver, constante se nada tivesse destruído o nosso costume. Conto que
estava o mesmo, aposto e condizente
—
“Tudo viva!, Riobaldo, Tatarana ,
Professor...” — ele concisou. — “Tu quis paz?”
Sagaz
assim me olhava, chega me cheirar só faltasse, de tornados a encontrar no
curral, como boi a boi. Disse que eu estava feliz, mas emagrecido, e que
encovava mais os olhos.
—
“Estais p’ra trás... Sabe? Negociei um gado... Mudei meus termos! A ganhar o
muito dinheiro — é o que vale... Pó d’ouro em pó...” — o que ele me disse.
E
era a pura mentira. Mas podia ser verdade.
Porque
ele, para se viver, carecia daquela bazófia, forte mestreava. Como logo ele
pregou:
—
“Há-te! Acabou com o Hermógenes? A bem. Tu foi o meu discípulo... Foi não foi?”
Deixei:
ele dizer, como essas glórias não me invocavam. Mas, então, ele não me
entendendo, esbarrou e se pôs. Cujo:
—
“A bom, eu não te ensinei; mais bem te aprendi a saber a saber certa a vida...”
Eu
ri, de nós dois.
Três
dias falhei com ele, lá, no Porto-Passarinho.
E
Zé Bebelo corrigiu, para eu ouvir, os projetos que ele tinha. Aí, ai,
fanfarrices. Não queria saber do sertão, agora ia para capital, grande cidade.
Mover com comércio, estudar para advogado. — “Lá eu quero deduzir meus feitos
em jornal, com retratos... A gente descreve as passagens de nossas guerras,
fama devida...” “— Da minha, não senhor!” — eu fechei. Distrair gente com o meu
nome... Então ele desconversou. Mas, naqueles três dias, não descansou de
querer me aliviar, e de formar outros planejamentos para encaminhar minha vida.
Nem indenizar completa a minha dor maior ele não pudesse. Só que Zé Bebelo não
era homem de não prosseguir. Do que a Deus dou graças!
Porque,
por fim, ele exigiu minha atenção toda, e disse:
—“Riobaldo,
eu sei a amizade de que agora tu precisa. Vai lá. Mas, me promete: não adia,
não desdenha! Daqui, e reto, tu sai e vai lá.. Diz que é de minha parte... Ele
é diverso de todo o mundo.”
Mesmo
escreveu um bilhete, que eu levasse. Ao
quando despedi, e ele me abraçou, senti o afeto em ser de pensar. Será que
ainda tinha aquele apito, na algibeira? E gritou: — “Safas!” —; maximé.
Tinha
de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo, para meu destino começar de
salvar. Porque o bilhete era para o Compadre meu Quelemém de Góis, na Jijujã —
Vereda do Buriti Pardo. Mais digo? O senhor vá lá. No tempo de maio, quando o
algodão lãla. Tudo o branquinho. Algodão é o que ele mais planta, de todas as
modernas qualidades: o rasga-letras, bibol, e mussulim. O senhor vai ver pessoa
de tal rareza, como perto dele todo-o-mundo pára sossegado, e sorridente,
bondoso... Até com o Vupes lá topei.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
Nunca gostei de ti, nunca te amei,
cidade
sem graça e sem horizontes,
ou
quase, se a graça, se o teu horizonte
é
só a parede, muralha sem fim,
o
azul infinito, que melhor se desdobra
da
banda de lá, país do das-Velhas,
que
escorrega seu barro, sem pressa, feliz.
Já
faz tanto tempo que a gente convive,
são
anos e anos, cinqüenta talvez,
fiéis
um ao outro, pesar do que sinto,
e,
assim como assim, então nos juntamos
num
abraço mortal que o tempo sem fim
vai
fazer perdurar no teu ventre deserto,
sem
flores, jasmins, sem estrelas, de ferro.
3/10/98.
terça-feira, 13 de novembro de 2012
OTELO E SANT'IAGO
É TEMPO
Mas
é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada
como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o
princípio da minha vida ; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir
das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das
rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma
ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E
explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez
valha a pena dá-la; é só um capítulo.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
segunda-feira, 12 de novembro de 2012
HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA
Tendo
superado sem maiores crises de consciência a tentação totalitária, a “verdade”
de Afonso Arinos parecia consistir no processo de reconversão ao catolicismo,
cujas posições defende e cuja nostalgia percorre todo o volume. No plano
político, ele se declarava igualmente contrário ao comunismo e ao fascismo,
assinalando embora a aspiração então generalizada pelos governos fortes e a
“moda” marxista que grassava entre os intelectuais brasileiros. O seu programa
era nacionalista: “o intelectual brasileiro deve, portanto (...) adotar o sadio
nacionalismo construtor”; o momento já não comportava o ceticismo elegante das
primeiras gerações republicanas: era um momento de fé, em todos os sentidos da
palavra. Protestando não alimentar sentimentos anti-semitas, não se pode negar,
contudo, que um bafio de surda hostilidade contra os judeus é uma de suas
tônicas intelectuais, o que, de resto constituía outro lugar-comum da época,
mesmo para um escritor que considerava Mussolini “um homem de gênio” e Hitler
um simples “caixeiro-viajante”. O tema vai desabrochar plenamente na Preparação ao Nacionalismo do ano
seguinte. Por enquanto, o anti-semitismo latente manifesta-se na forma
depreciativa, mas insistente, com que repete o adjetivo “judeu” com referência
as pessoas ou às idéias: “o sutil israelita Julien Benda”; Graça Aranha, judeu
inquieto; “um judeu genial, S. Paulo”, e assim por diante. Propondo um
nacionalismo ardente mas vago (não se sabe, afinal de contas, em que
consistiria o “nacionalismo construtor”), Afonso Arinos não poupava sarcasmos
ao modernismo literário e artístico, parte integrante do que ele encarava como
a “desordem brasileira”:
A desordem literária é também inegável e
da origem desta sou testemunha pessoal. Começou há menos de dez anos quando
alguns escritores novos, ansiando pela derrubada do dogma estético, investiam
desabridamente contra o passado, iconoclastas de pouco discernimento, que
pretendiam destruir o que era mau (...) mas que atingiam também, sob os golpes
incertos, o pouco que tínhamos de bom (...) O intelectual brasileiro que deixe,
pois, o modernismo para a basbaquice intolerante e verbosa, e fique com a
atualidade, isto é, com a eternidade.
Percebe-se
que a sua hostilidade ao Modernismo decorria de encará-lo como um movimento
internacionalista, ou seja, por implicação, marxista e judaico; ele imaginava
que a civilização técnica tocava ao fim, com o declínio da influência
norte-americana; afirmava que, no Brasil, eram pequenas “as probabilidades de
implantação de uma ditadura militar ou civil, de tendência fascista” e pregava
um regime de liberdade, com os intelectuais, e não os tecnocratas, no poder.
Wilson
Martins
História
da Inteligência Brasileira
vol.
VII (1933-1960)
Cultrix.
São Paulo, SP.
Editora
da Universidade de São Paulo.
São
Paulo, SP. 1977-78.
sábado, 10 de novembro de 2012
PANEM NOSTRUM
Sinto-me
salivado pelo Verbo,
rodeado
de presença e mensagens,
de
santuários falhados e de quedas,
de
obstáculos, de limbos e de muros.
Furo
as noites e vejo-te, Solstício,
ou
recolho-me ao âmago das coisas,
renovo
um sacrifício expiatório,
lavo
as palavras como lavo as mãos.
Esta
é a zona sem mar e sem distância,
solidão-sumidouro,
barro-vivo,
barro
em que reconstruo sangues e vozes.
Não
quero interromper-me nem findar-me.
Desejo
respirar-me no Teu sopro,
aparecer-me
em Ti, continuado.
Jorge
de Lima
Livro
de Sonetos
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
G. RAMOS
O
receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo
convivência forçada já não me apoquenta. Muitos desses antigos companheiros
distanciaram-se, apagaram-se. Outros permaneceram junto a mim, ou vão
reaparecendo ao cabo de longa ausência, alteram-se, completam-se, avivam
recordações meio confusas — e não vejo inconveniência em mostrá-los. Alguns
reclamam a tarefa, consideram-na dever, oferecem-me dados, relembram figuras
desaparecidas, espicaçam-me por todos os meios. Acho que estão certos: a
exigência se fixa, domina-me. Há entre eles homens de várias classes, das
profissões mais diversas, muito altas e muito baixas, apertados nelas como em
estojos. Procurei observá-los onde se acham, nessas bainhas em que a sociedade
os prendeu. A limitação impediu embaraços e atritos, levou-me a compreendê-los,
senti-los, estimá-los, não arriscar julgamentos precipitados. E quando isto não
foi possível, às vezes me acusei. Ser-me-ia desagradável ofender alguém com
esta exumação. Não ofenderei, suponho. E, refletindo, digo a mim mesmo que, se
isto acontecer, não experimentarei o desagrado. Estou a descer para a cova, este novelo de casos em
muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão — e provavelmente isto
será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias. Realmente há entre
os meus companheiros sujeitos de mérito, capazes de fazer sobre os sucessos a
que vou referir-me obras valiosas. Mas são especialistas, eruditos,
inteligências confinadas à escrupulosa análise do pormenor, olhos afeitos a
investigações em profundidade. Há também narradores, e um já nos deu há tempo
excelente reportagem, dessas em que é preciso dizer tudo com rapidez. Em
relação a eles, acho-me por acaso em situação vantajosa. Tendo exercido vários
ofícios, esqueci todos, e assim posso mover-me sem nenhum constrangimento. Não
me agarram métodos, nada me força a exames vagarosos. Por outro lado, não me
obrigo a reduzir um panorama, sujeitá-lo a dimensões regulares, atender ao
paginador e ao horário do passageiro do bonde. Posso andar para a direita e
para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens
desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos.
Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se
os enxergasse pelos vidros pequenos de
um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me
parecer conveniente.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume –Viagens
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
GR
José
Rebelo Adro Antunes, vulgo Zé Bebelo: O Símbolo de um Novo Ciclo; A Urbanização
/ Industrialização
Como
já foi visto anteriormente, o fenômeno do cangaço ocorre em um determinado
espaço geográfico, num tempo histórico preciso. No Brasil, existiu no interior
do país, no Nordeste semi-árido, num momento em que a sociedade brasileira vai
modificando sua estrutura pré-industrial no sentido de uma maior mecanização,
de um capitalismo agrário.O fenômeno cangaço, na forma em que foi estudado,
existiu entre 1840 e 1940, não antes e não depois. O último grande Chefe foi
Corisco, o Diabo Louro, morto em 1940.
Os
processos de modificação econômica são lentos, e talvez ainda não estejam
consolidados hoje no interior do sertão nordestino, mas foram suficientemente
fortes para mudar as relações pessoais do sertanejo com seu senhor, trazendo
uma relação do tipo patrão/empregado assalariado.
A
conseqüência dessa situação, acrescido o fenômeno paralelo da urbanização, é
que se criou um canal drenador para a mão-de-obra excedente do nordestino. Ela
volta a migrar, agora para a grande cidade, tentando conseguir emprego nas
indústrias e um melhor nível de vida, com acesso à escola para seus filhos e
uma vida mais digna de um modo geral;
“a
penetração do capitalismo no campo, com desenvolvimento acentuado no Sul, o
surto de industrialização que atrai imigrantes, a urbanização intensiva é que
foram arrancar o semi-servo da estagnação do meio rural e dar-lhe outros
caminhos que não os do bando do cangaço, ou os místicos itinerários dos beatos
e conselheiros” (Facó, p. 43).
A
narração de Riobaldo dá-se provavelmente, como o intuiu bem José Hildebrando
Dacanal, após o início do processo de industrialização que se fixou no país a
partir de 1930, grosso modo. No
momento histórico da narração, não há mais jagunços e as pessoas estão modificadas,
diferentes. Esse “programa” é iniciado com Zé Bebelo; é ele quem lança a
semente que germinará anos depois, tendo já crescido no momento da narração.
Antes,
porém — e o republicanismo no Brasil será também um movimento progressista — o dinheiro começa a circular de fato nos
grandes centros, mudando o eixo do poder da zona rural para a zona urbana. O
capital do comércio negreiro havia sido investido nas cidades e estas começaram
a —Concomitantemente, as “descobertas” do século começam a chegar ao país, que
se moderniza:
“ampliou-se
a rede bancária, construíram-se as primeiras estradas de ferro, inaugurou-se o
telégrafo, introduziu-se a navegação a vapor nos nossos rios e a iluminação a
gás substituiu, nos centros urbanos de maior importância, a velha iluminação a
azeite” (Luz).
Por
outro lado, a intelligentzia
nacional, formada por jovens bacharéis do meio rural — os pais de mais posse
mandam –nos para as grandes capitais — mandam seus filhos para a Europa, os de
menos posses mandam-nos para as grandes capitais — tende a não voltar para o
campo, fixando-se nas cidades, e trazendo para elas a efervescência das novas
idéias de civilização e progresso:
“em
conseqüência, começou a surgir nas cidades e vilas uma nova função — a de
distribuidor desses gêneros (rurais). Modificaram-se assim as relações entre
cidade e campo: não mais de simples dependência, mas de interdependência. Com
estas modificações os centros urbanos passaram a adquirir maior importância, e
as decisões políticas, principalmente nas grandes cidade, já não se enfeixam
exclusivamente nas mãos do senhor rural. Outros interesses, particularmente os
financeiros e posteriormente os industriais começam a pesar na balança” (Luz,
3).
É
a partir das cidades, então, que já no fim do Segundo Império têm grande
independência com relação ao campo, que os jovens bacharéis e políticos começam
a querer modificá-lo, começando por subordiná-lo à cidade/capital, através da
idéia do federalismo. Um corolário dessa situação é que a cidade passa a ter olhos
de superior para com o campo, reacionário e atrasado. Os republicanos tinham um
programa altamente “civilizador”, embora não pretendessem mudar as estruturas
sócio-econômicas da zona rural, de onde são egressos, e que representam na
Câmara e no Senado.
A
República, quando de fato instaurada, embora efetivando o programa de
federalismo, não tocará nas estruturas sócio-econômicas mais profundas do país.
Os grandes senhores rurais continuam a ditar, embora já não com tanto fôlego —
outras classes entraram em cena, como os militares e a classe média urbana — as
regras do jogo.
São
mudanças na conjuntura internacional que, a partir da Primeira Guerra Mundial,
farão com que se modifiquem realmente essas regras do jogo. O país sofre o
primeiro choque nas suas relações de importação e exportação. Os preços de
nossos produtos (café, açúcar) caem, e tem-se dificuldade em importar os
insumos básicos necessários ao desenvolvimento do país.
A
industrialização e a urbanização já são um processo irreversível na década de
vinte, e não necessitam mais que uma Grande Recessão para instalarem-se
definitivamente na estrutura sócio-econômica do país... O que se assiste,
então, é à perda de poder efetivo por parte das oligarquias rurais
tradicionais, e à penetração do capitalismo no campo.
É
esse processo que está simbolizado no antagonismo entre os dois chefes Joca
Ramiro e Zé Bebelo. No entanto, este “perde a parada”, e é com Riobaldo que
veremos sua consolidação.
Tania
Rebelo Costa Serra
Riobaldo
Rosa.
A
Vereda Junguiana do Grande Sertão.
Thesaurus.
Brasília. l990.
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