domingo, 30 de setembro de 2012
EMANUEL E FEDERICO
Sua
casa. Sempre pudesse ser. Mas lá, a Samarra, não era dele. Manuelzão trabalhava
para Federico Freyre — administrador, quase sócio, meio capataz de vaqueiros,
certo um empregado. Porém Federico Freyre em bem uma vez por ano se lembrava de
aparecer, e Manuelzão valia como único dono visível, ali o respeitavam.Às
horas, quando na boa mira dum sonho consentido, ele chegava mesmo a se
sobre-ser, imaginando quase assim já fosse homem em poder e rico, com suas
apanhadas posses. Um dia, havia-de. Sempre puxara por isso, a duras mãos e com
tenção teimosa, sem um esmorecimento, uma preguiça, só lutando. Ele nascera na
mais miserável pobrezazinha, desde menino pelejara para dela sair, para pôr a
cabeça fora d’água, fora dessa pobreza de doer. Agora, com perto de sessenta
anos, alcançara aquele patamar meio confortado, espécie de começo de metade de
terminar. Dali, ia mais em riba. Tinha certeza. E na Samarra todos enchiam a
boca com seu nome: de Manuelzão. Sabiam dele. Sabiam da senhora sua Mãe, dona
Quilina, falecida. Sua mãe, que, meses antes, velhinha viera para aquele ermo,
visitando-o. Pudera ir buscá-la, enfim era a primeira ocasião em ue se via
sediado em algum lugar, fazendo de meio-dono. E ela pensara até que ele fosse
dono todo. A mãe apreciara aquilo, o Baixio da Samarra, a Vereda da Samarra, o
território. No tempo de adoecer, ela mencionara a mesa-de-campo, como o ponto
ideado para se erigir uma capelinha, a sobre.
Ela estava a se pensar? Lá mesmo Manuelzão a enterrou, confechando quase
à borda da chã um cemiteriozinho razoável, cercado de aroeiras, moirões que
podiam durar sem acaba, e coberto pelo capim duro do cerrado, no qual, no raiar
das madrugadas, o orvalho é azul e mata a sede. Ao lado, ergueu a capelinha.
Enquanto pôde uma folga, na lida. O principal da idéia da capelinha então tinha
sido de sua mãe. Mas ele cumprira. E ele inventara a festa, depois.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º vol.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
sábado, 29 de setembro de 2012
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
A
quem compararei esta geração? Ela é como crianças sentadas nas praças, a
desafiarem-se mutuamente:
Nós
vos tocamos flauta
e
não dançastes!
Entoamos
lamentações
e
não batestes no peito!
Com
efeito, veio João, que não come nem bebe, e dizem: ‘Um demônio está nele’. Veio
o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘Eis aí um glutão e beberrão, amigo
de publicanos e pecadores’. Mas a Sabedoria foi justificada pelas suas obras.
Mt
11, 16-19
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
A BÍBLIA SAGRADA
Sucedeu,
depois desses acontecimentos, que o copeiro do rei do Egito e seu padeiro
ofenderam seu senhor, o rei do Egito. Faraó irou-se contra seus dois eunucos, o
copeiro-mor e o padeiro-mor, e mandou detê-los na casa do comandante dos
guardas, na prisão onde José estava detido. O comandante dos guardas
agregou-lhes José para que os servisse, e ficaram certo tempo detidos.
Ora,
numa mesma noite, os dois, o copeiro e o padeiro do rei do Egito, que estavam
detidos na prisão, tiveram um sonho, cada qual com a sua significação. De
manhã, vindo encontrá-los, José percebeu que estavam acabrunhados e perguntou
aos eunucos do Faraó que estavam com ele detidos na casa de seu senhor: “Por
que tendes hoje o rosto triste?” Eles lhe responderam: “Tivemos um sonho e não
há ninguém para interpretá-lo. José lhes disse: “É Deus quem dá a
interpretação; mas contai-mo!”
O
copeiro-mor narrou a José o sonho que tivera “Sonhei”, disse ele, “que havia
diante de mim uma videira, e videira três ramos: deram brotos, floresceram e as
uvas amadureceram em cachos.Eu tinha na mão a taça do Faraó: peguei os cachos
de uva, espremi-os na taça do Faraó e coloquei a taça na mão do Faraó. José lhe
disse: “Eis o que isto significa: os três ramos representam três dias. Mais
três dias e o Faraó te erguerá a cabeça e te restituirá o emprego; colocarás a
taça do Faraó em sua mão, como outrora tinha o costume de fazer, quando eras
seu copeiro. Lembra-te de mim, quando te suceder o bem, e sê bondoso para falares
de mim ao Faraó, a fim de que me faça saai desta prisão. “Com efeito, fui
arrebatado da terra dos hebreus e aqui mesmo nada fiz para que me pudessem
prender.”
O
padeiro-mor viu que era uma interpretação favorável e disse a José: “Eu também
tive um sonho: havia três cestas de bolos sobre a minha cabeça. Na cesta mais
alta havia todos os tipos de doces que o Faraó come, mas as aves os comiam na
cesta, sobre a minha cabeça.” José respondeu assim: “Eis o que isto significa:
as três cestas representam três dias. Mais três dias ainda e o Faraó te erguerá
a cabeça, enforcar-te-á e as aves comerão a carne acima de ti.”
Efetivamente,
no terceiro dia, que era o aniversário
do Faraó, este deu um banquete a todos os seus oficiais; Ele reabilitou o
copeiro-mor na copa real e este colocou a taça na mão do Faraó; quanto ao
padeiro-mor, enforcou-o, como José lhe havia explicado. Mas o copeiro-mor não
se lembrou de José; ele o esqueceu.
Gn
40, 1-23
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
AZUL
Um
dia, através do jogo capitalista,
do
sobe-e-desce das bolsas,
dos
investimentos intercontinentais,
a
Terra será de um único dono.
E
todos os homens o adoraremos,
em
espírito e em verdade,
como
nosso único Senhor.
Biocor
3-4/1/98
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
OTELO E SANT'IAGO
TIO
COSME
Tio
Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como
prima Justina; era a casa dos três viúvos.
A
fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do
capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório
na antiga rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava
no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe
vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os
debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.
Era
gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas
recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe
lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira
segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto
seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o
primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito.
Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças
físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do
selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber
o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.
Também
não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde
vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha
medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando
me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo,
entrei a gritar desesperadamente: “Mamãe! mamãe!”. Ela acudiu, pálida e
trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me , afagou-me, enquanto o
irmão perguntava:
—
Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?
—
Não está acostumado.
—
Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte
a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os
outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, Mana Glória.
—
Pois que se queixe; tenho medo.
—
Medo! Ora, medo!
A
verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que
por vergonha de dizer que não sabia montar. “Agora é que ele vai namorar
deveras”, disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio
Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam
que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os
anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o
resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do
ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez
dizia pilhérias.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
terça-feira, 25 de setembro de 2012
EMANUEL E FEDERICO
Por
tudo, mesmo sem precisão, ele não saía de cima do cavalo — estava com um
machucão num pé — indo e vindo da capela, sol a sol vinte vezes, dez vezes,
acompanhado sempre pelo rapazinho Promitivo. Não esbarrava. Não sabia de
esforço por metade. Vai agorinha, um exemplo, deixava as mulheres na arrumação
e tocava para a Casa, a ver a chegada de mais povo. Ativo e quieto, Manuelzão,
ali à porta se entusiasmava, público como uma árvore, em sua definitiva
ostentação. Embora dois dias para a véspera ainda faltassem, as pessoas de fora
já eram em número. Gente de surrão e bordão, figuras de romaria. Alguns, tão
estranhos, que antes de apear do cavalo invocavam em alta voz o louvor a
Cristo-Jesus e esperavam de olhos quase fechados o convite para entrar com toda
paz e mão irmã na hospitalidade geral. Outros, contando alguém doente em sua
comitiva, imploravam licença para armar as tipóias ou latadas lá mesmo, na
rechã descampada e ventosa, não distante da capelinha. Outros tangiam adiante
cabeças de gado, sobradas para vender, pois também uma boiada estava-se
ajuntando, devendo sair logo depois dos dias santos, conforme o grande aviso
que Manuelzão difundira. — “...Siô, siô,
mesmo aqui mesmo que a Simarra é?” — sempre sabiam. Pobres lazarados queriam
ajudar em algum serviço; por devoção e esperança de comida. Até aleijados, até
vultos ciganos, más mulheres, lindas moças — do rumo do Chapadão tudo é
possível. Havia quem precisasse da caridade de agulha e linha para recoser suas
roupas, urtigadas contra os espinheiros, no atravessarem trechos de caatinga.
Um ou mais de um, três vezes armado no cinturão e com chapéu-de-couro claro
quebrado adiante, não ditava de esconder sua má menção de brabo sertanejo,
capaz de piorar assuntos; e Manuelzão, tanto quanto conseguia disfarçar um
desgosto, acolhia-os proferindo que não era bem ele, mas sim a Nossa Senhora do
Socorro, quem os agasalhava , aos que vinham para a respeitar e venerar.
Principalmente mulheres, de trouxa à cabeça e pondo para a frente seus meninos,
desciam a encosta — uma extensa encosta aladeirada, rachada de grotas de chuva
roer, e pela qual se espalhavam, em quantidade, galhos verdes cortados de
árvores, dos que os carreiros nas descidas usam para acorrentar à traseira de
seus carros-de-bois, à guisa de freios. Aquém, no terço baixo dessa aba, era a
Casa.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º vol.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
OS INCONFIDENTES
CARTA-DENÚNCIA
DE DOMINGOS DE ABREU VIEIRA; CADEIA DE VILA RICA, 28-05-1789.
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor
Além
do que já ontem disse aos ministros que vieram falar comigo, acresce que
queriam pôr casa de moeda e pôr o ouro a 1$500, e que assim não saísse mais o
ouro que estivesse no erário desta Vila; assim o dizia o Alferes Tiradentes,
que também o dizia o Alvarenga e o Vigário de São José, e também disse o Padre
José da Silva Rolim; e que o Desembargador
Gonzaga concorria para isto aconselhando; e que também entrava o
Tenente-Coronel Francisco de Paula Freire; eu lho não ouvi, mas o diziam assim
aqueles ditos, Alferes Tiradentes e Padre José da Silva, que andavam sempre nas
assembléias; e que a maior parte do Regimento Pago havia de estar pronta para a
tal ocasião; e que alguns oficiais estavam convidados também: o Tenente Antônio
Agostinho (Antônio Agostinho Lobo Leite Pereira, futuro Capitão-Mor de Vila
Rica, depois do falecimento de José Álvares Maciel (pai do inconfidente do
mesmo nome), a quem sucedeu, sendo confirmado no cargo em dezembro de 1793),
disse o Tiradentes que estava falado e que ele respondera que estaria pronto,
pois também era mazombo (termo depreciativo designando o natural do Brasil,
descendente de portugueses), e prometera, quando chegasse seu sobrinho, o
Sargento-Mor Vasconcelos, o havia de convidar para o mesmo fim; e também dizia
o Tiradentes que o Alferes Matias Sanches estava convidado e pronto; e também o
Capitão Antônio José de Araújo, o Tenente Melo e o Alferes Antônio Gomes
Meireles, para no caso de ser preciso ajudar e capacitar algum do Porto do
Siró; também diziam que já faziam as leis para se governar, que estas se faziam
em casa do Desembargador Gonzaga, onde estava o Vigário do Rio das Mortes e o
Coronel Alvarenga, que eram muito fortes na tal desordem; o cabeça de tudo era
o Tiradentes, dizendo que ele e o Alvarenga haviam de ser os heróis da função,
pois defendiam a sua pátria; que os mazombos também valimento e sabiam
governar; e que dando a sua terra tantos haveres, se achavam pobres por lhe
tirarem tudo para fora, mas que a haviam de pôr em liberdade; que só esperavam
se botasse a derrama, pois que a terra não podia pagar e que tudo ia para o
Reino; que se havia mudar a praça para o Rio das Mortes, por ser mais cômoda e
farta de mantimentos; e que nesta Vila haviam de pôr estudos como em Coimbra; e
que havia estar pronta a artilharia e todo o mais trem; se haviam utilizar
dele; que assim o diziam o Alvarenga, o Vigário e Tiradentes; que haviam de
mandar vir socorro de gente das partes de São Paulo.
Tudo
isto que sei e tenho dito, ouvi ao Tiradentes e ao Padre José da Silva, pois
nunca conversei com o Vigário de São José nem com o Alvarenga, nem com o
Gonzaga. E protesto declarar tudo o mais que me lembrar a este respeito. Espero
que Vossa Excelentíssima se compadeça de mim, que não entrei nestas desordens;
que aqueles demônios me contaram sem eu os acreditar; e assim o espero da
proteção de Vossa Excelência, que Deus guarde por muitos anos.
De
Vossa Excelência
o
mais humilde escravo
Domingos de Abreu Vieira
domingo, 23 de setembro de 2012
MACHADO
UMA
NAÇÃO CAPITU
Os
olhos de Capitu, de cigana oblíqua e dissimulada da personagem de Machado de
Assis são um patrimônio feminino brasileiro.
Como
seria interpretar, sobre um palco, a personagem Capitu, com seus olhos de
cigana oblíqua e dissimulada? É impossível, para uma atriz, dar conta
totalmente da complexidade desse olhar tão poderosamente descrito por Machado
de Assis em Dom Casmurro. Cada um de
nós teria, certamente, o seu toque oblíquo, as suas olheiras de ressaca, a sua
dissimulação, o seu fluido misterioso e energético. A minha intuição me faria
interpretar Capitu com a absoluta crença de que esse olhar está, todo ele,
subdividido no olhar da brasileira. Todas nós somos Capitu. Esse olhar nos
pertence. E só a nós. É um patrimônio do feminismo brasileiro.
Machado
nos ensinou a vê-lo e o equacionou. Esse olhar é a nossa miscigenação, a nossa
aparente submissão, são as nossas olheiras amorosamente gulosas, quentes e
erotizadas. É o olhar que denuncia a marginal vitória desse ser-mulher
colonizado. Olhar de quem dissimuladamente aceita o jogo surdo, silencioso, de
carrasco e vítima, jogo fascinante e cruel na aparente aceitação das diversas
manifestações do relacionamento humano. Essa luta dolorosa fascina Dom Casmurro
porque ela é jogada no campo da dúvida.
Ao
descrever Capitu, Machado esclarece: “Retórica dos namorados, dá-me uma
comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não
me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. Nessas circunstâncias, o autor lança mão da imagem da cigana
(presença marginal), do olhar de ressaca (visão de uma carne indomável) e do
olhar oblíquo (não definido, não confiável, dissimulado).
Os
olhos mostram o que desejamos ver por meio deles. É sempre também o reflexo, a
projeção de quem olha. Esse perscrutar de olhares se apresenta desde o primeiro
momento em que os hormônios começam a latejar. Não é só o menino que é o pai do
homem. A menina também é a mãe da mulher. Os heróis de Dom Casmurro se conheceram na adolescência. Com mais luz ou menos
luz, os olhos de uma menina de 14 anos já denunciam o olhar de toda uma vida.
Dom Casmurro é um tratado sobre o olhar. Capitu é emblemática.
Bentinho
descreve seu próprio olhar, olhando Capitu. Ouso falar sobre Capitu como atriz.
Como se estivesse analisando um texto de dramaturgia, juntamente com um elenco,
ao redor de uma mesa. Não estou aqui me arvorando em crítica literária. E como
mulher de palco digo que, se eu tivesse tido na minha vida a oportunidade de
tentar interpretar Capitu, partiria do ponto de vista de sua clara, profunda e
inconfundível brasilidade.
Não
estou circunscrevendo Capitu à nossa aldeia. Ela é universal como literatura e
como perfil de mulher. Indo além do que já ousei e me arrisquei nestes
parágrafos, intuo que, embora o Brasil seja nome masculino, nosso país, por
nossa complexidade oblíqua, energética, misteriosa, pela nossa história contada
sempre de uma forma tão dissimulada e pelo fascínio tão decantado de nossos
trópicos, é, no fundo, uma nação Capitu.
Fernanda
Montenegro
em
Quem é Capitu?
org.
de Alberto Schprejer
Nova
Fronteira. Rio de Janeiro.
2008.
sábado, 22 de setembro de 2012
G. RAMOS
Resolvo-me
a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos — e, antes de
começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido. Não conservo
notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo,
ia-me parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir esta
narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei
que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia, como
adiante se verá. Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas,
sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me
deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas
teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira? Que
diriam ellas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo
palavras contestáveis e obliteradas?
Restar-me-ia
alegar que o DIP, a polícia, enfim os hábitos de um decênio de arrocho, me
impediram o trabalho. Isto, porém, seria injustiça. Nunca tivemos censura
prévia em obra de arte. Efetivamente se queimaram alguns livros, mas foram
raríssimos esses autos-de-fé. Em geral a reação se limitou a suprimir ataques
diretos, palavras de ordem, tiradas demagógicas, e disto escasso prejuízo veio à
produção literária. Certos escritores se desculpam de não haverem forjado
coisas excelentes, por falta de liberdade — talvez ingênuo recurso de
justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos
oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e
social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda
nos podemos mexer. Não será impossível acharmos nas livrarias libelos terríveis
contra a república novíssima, às vezes com louvores dos sustentáculos dela,
indulgentes ou cegos. Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o
fizermos perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes,
ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos
suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume, Viagens
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
Aconteceu
que estando ele à mesa em casa, vieram muitos publicanos e pecadores e se
assentaram à mesa com Jesus e seus discípulos. Os fariseus, vendo isso,
perguntaram aos discípulos: “ Por que come o vosso Mestre com os publicanos e
os pecadores?” Ele, ao ouvir o que diziam, respondeu: “Não são os que têm saúde
que precisam de médico, e sim os doentes. Ide, pois, e aprendei o que
significa: Misericórdia quero, e não o
sacrifício. Com efeito, eu não vim chamar justos, mas pecadores.”
Mt
9, 10-13
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
PANEM NOSTRUM
Em
que distância de ontem te modulo,
mundo
de relativos compromissos?
Novas
larvas e germes em casulo,
novos
santos e monges e noviços.
Não
máscaras nos olhos. Nem simulo.
Eu
era pião, já vão evos mortiços
naquele
calendário agora nulo,
com
seus cerimoniais de escuros viços.
Recordas-te
do afim, teu rei colaço?
Lembras-te
dele em queda? Céus dos dias
com
luzeiros — incêndios, lumes de aço.
E
tu, grande Lusbel, guia dos guias
para
reinar perdeste-me também
a
mim que fui o espelho em que te vias.
Jorge
de Lima
Livro
de Sonetos.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
OS NOVOS INCONFIDENTES
APOSENTADORIA
(Cont.)
João
Cristóvão Cardoso
João
da Costa Froes
João
de Deus Melo
João
Doca Filho
João
Evangelista da Silva Simões
João
Evangelista de Souza
João
Ferreira de Souza
João
Francisco da Silva Toledo
João
Herculino de Souza Lopes
João
José de Ribamar Rego
João
Kiffer Neto
João
Licínio da Silva
João
Luiz Duboc Pinaud
João
Manoel de Melo
João
Maria Cordeiro
João
Mendonça Falcão
João
Natal Zanuto Filho
João
Nélson Sobieray
João
Pessoa Rezende
João
Ramos
João
Ribeiro da Cunha
João
Rodrigues de Oliveira
João
Severino Gomes
João
Silva
João
Soares dos Santos
João
Stélio Pimentel
João
Valentim de Siqueira
Joaquim
Alves Costa
Joaquim
Arcoverde
Joaquim
Belarmino Tine
Joaquim
Hilário da Fonseca Júnior
Joaquim
José Barcelos Felizardo
Joaquim
Laveran Fallerice
Joaquim
Marques Teixeira
Joaquim
Nobre de Lacerda Neto
Joaquim
Vicente Cardoso Neto
Joel
Alves Netto
Joel
Costa
Joel
Domingos Lage
Jomard
Muniz de Brito
Jon
Andoni Vergareche Maitre-Jean
Jonas
Daniel
Jonas
Lourenço Soares
Jonas
Paes Cavalcanti
Jorge
Augusto Lopes Fechner
Jorge
Borges
Jorge
Carone Filho
Jorge
Cheuen
Jorge
da Silveira
Jorge
de Mattos Valle
Jorge do Nascimento
terça-feira, 18 de setembro de 2012
OS INCONFIDENTES
CARTA-DENÚNCIA
DE FRANCISCO ANTÔNIO DE OLIVEIRA LOPES; CACHOEIRA DO CAMPO, 19-05-1789.
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor
Dou
parte a Vossa Excelência por escrito do que já manifestei a Vossa Excelência
por palavras: Que o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza me havia dito que
ouvira ao Coronel Joaquim Silvério dos Reis, em casa do Capitão José de Resende
Costa, em ato de revista que passava o Tenente-Coronel João Carlos Xavier da
Silva Ferrão, e mais pessoas que se achavam na dita revista, que o dito Coronel
Joaquim Silvério dissera que esta terra podia ser um império, ser um país
liberto, e que nesta terra não havia homens, e que, se os houvesse, que em
pouco tempo seriam senhores da terra; e que ele, dito sargento-mor, se
despedira do Tenente-Coronel João Carlos e que se fora embora; e passados
alguns dias, fora o Coronel Joaquim Silvério a Vila de São José e lhe dissera
que, se ele queria encarregar-se de ir a fazer gente para as bandas de São
Paulo, que ele assistiria com o dinheiro, pois se houvesse um patrício que
fosse o libertador dos mais, que estava toda Vila Rica, Sabará, Serro e Minas
Novas, que tudo estava pronto; e que ele, dito sargento-mor, se opusera a isso:
“Que ele coronel se não metesse nisso que ficava perdido”, e que o despersuadira
com razões que, se não deixasse de tal intento, que dava parte; e que o dito
coronel lhe pedira com as mãos postas que não falasse o dito sargento-mor, que
ele prometia nunca mais falar em tal, o que lhe pedia como amigo; e que, mais,
lhe dissera o mesmo Coronel Joaquim Silvério que, vindo do giro em que vinham
de passar as revistas com o Tenente-Coronel João Carlos, vindo de S. Tiago, em
um alto parara o cavalo e dissera para os que vinham na comitiva, (João Carlos,
o Sargento-Mor Pestana, e outros mais): “Que mundo novo não é este! Que país
não seria este! O melhor do mundo!”; que o Tenente-Coronel João Carlos picara o
cavalo e fora andando, e que ao depois ele, dito tenente-coronel, caíra em si
do que havia dito.
E
indo eu à Vila de São José a ir depor em uma causa do Coronel Joaquim Silvério,
na volta quando nos vínhamos recolhendo, em caminho, me veio dizendo o
Sargento-Mor Luís Vaz o que acima relato; e eu disse ao mesmo sargento-mor que
logo viesse depor e que estas coisas se não deviam calar; e me respondeu o
mesmo sargento-mor que ele, dito coronel, lhe havia pedido com as mãos postas,
que semelhantes loucuras ali acabavam. Vi mais a este respeito uma carta de uma
senhora, freira de Santa Clara de Coimbra, escrita ao Sargento-Mor Joaquim Pedro
da Câmara, em que lhe dizia que se fosse embora para Portugal que esta terra
estava para se levantar; e que não quisesse ficar sujeito aos homens, e que não
deixasse o governo da Soberana; e esta carta me não mostrou o sargento-mor por
querer mostrar a novidade, porque isto tomou como loucura; assim, mostrou-a,
porque nela não falava em uma senhora que se achava no mesmo Convento; e eu lhe
disse que aquela carta se não devia mostrar a pessoa alguma, à vista do
Ajudante Tomás da Costa e do Capitão Antônio Nunes; ao que me respondeu o
sargento-mor: “Isto são loucuras de freiras, que os maganões lhe metem quatro
petas”; disto não dei logo parte a Vossa Excelência; como alguns passos se
passaram na presença do Tenente-Coronel João Carlos Xavier da Silva Ferrão,
Ajudante de Ordens de Vossa Excelência, devia capacitar-me que logo desse parte
a Vossa Excelência.
Excelentíssimo
Senhor, isso ponho na respeitável presença de Vossa Excelência como leal
vassalo, fiel e obediente às ordens da Soberana, para que Vossa Excelência dê
as providências que forem justas em segurança do Estado, assim como pelo posto
que ocupo.
Francisco
Antônio de Oliveira Lopes
Coronel
de São João del-Rei
Reconheço
a letra desta carta e firma abaixo ser tudo do próprio punho do Coronel Francisco
Antônio de Oliveira Lopes por outras semelhantes. Vila Rica, 15 de junho de
1789.
José
Caetano César Manitti
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
Vendo
Jesus que estava cercado de grandes multidões, ordenou que partissem para a
outra margem. Então chegou-se a ele um escriba e disse: “Mestre, eu te seguirei
para onde quer que vás”. Ao que Jesus respondeu: “As raposas têm tocas e as
aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.
Outro
dos discípulos lhe disse: Senhor, permite-me ir primeiro enterrar meu pai”. Mas
Jesus lhe respondeu: “Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos”.
Mt
8, 18-22
domingo, 16 de setembro de 2012
PANEM NOSTRUM
BRAÇOS
Braços
nervosos, brancas opulências,
Brumais
brancuras, fúlgidas brancuras,
Alvuras
castas, virginais alvuras,
Lactescências
das raras lactescências.
As
fascinantes, mórbidas dormências
Dos
teus abraços de letais flexuras,
Produzem
sensações de agres torturas,
Dos
desejos as mornas florescências.
Braços
nervosos, tentadoras serpes
Que
prendem, tetanizam como os herpes,
Dos
delírios na trêmula coorte...
Pompa
de carnes tépidas e flóreas,
Braços
de estranhas correções marmóreas,
Abertos
para o Amor e para a Morte!
Cruz
e Sousa
Broquéis
sábado, 15 de setembro de 2012
OS NOVOS INCONFIDENTES
APOSENTADORIA (Cont.)
Hotelo
Telles de Andrade
Hugo
Antônio Ronconi
Hugo
de Souza Lopes
Hugo
de Souza Xavier
Hugo
Weiss
Hugolino
de Andrade Uflacher
Humberto
Ferreira da Silva
Humberto
Melo
Humberto
Wálter Barroso de Souza
Iara
Guimarães Brant Pereira
Ignácio
Godoy dos Santos
Ignácio
Hansen Barbosa
Iguatemy
Jorge de Andrade
Ijalme
Leite Gomes
Ildefonso
Pereira da Mota Filho
Ildico
Maria Erzsebet
Inaldo
Faria Mendes
Inard
Guimarães de Oliveira
Isaías
Raw
Ismael
Luiz do Nascimeento
Isnaldo
Martins de Lyra
Israel
Dias Novaes
Israel
Sant’Ana
Itan
de Azevedo Pereira
Ivan
Guilherme de Oliveira
Ivan
Luiz Eggers
Ivo
Monteiro
Jacob
de Souza Filho
Jadir
Silva
Jaime
de Araújo Andrade
Jaime
Machado
Jaime
Ramos da Fonseca Lessa
Jaime
Tiomno
Jairo
Correa Custódio
Jamil
Haddad
Jarbas
Lopes
Jarmelino
Jorge de Souza
Jatir
de Almeida Rodrigues
Jayme
Azevedo Rodrigues
Jayme
de Araújo Andrade
Jayme
Pereira de Vasconcelos
Jean
Claude Bernadet
Jenny
de Rezende Rubim
Jerônimo
Geraldo de Queiroz
Jerônimo
Moreira da Rocha
Joacir
Correa de Mendonça
João
Alfredo Gonçalves da Costa Lima
João
Batista Dias
João
Batista Telles Soares de Pina
João
Batista Vilanova Artigas
João
Brusa Neto
João
Carlos Brun Torres
Joâo
Carlos Guaragna
João
Cezário de Faria
João
Coelho Leite
João
Corsino de Freitas
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
EMANUEL E FEDERICO
Sobre
que se sabia o mais forte, dava de ombros, entretanto, assoado. Sua animação o
levava, crescente. Não que descuidasse, por uma hora sequer, o governo do mundo
dali: determinar aos campeiros e agregados a fazeção de cada dia. Mas, desde uns dois meses, quando principiara, media rude impulso, o fervor que o influía
era aquele. Primeiro, ter a capelinha pronta — uma ação durável, certa. Daí,
gastando um prazerzinho, tomara fôlego. Mas não bastava. Carecia da sagração, a
missa. A festa, uma festa! Por si, ele nunca dera uma festa. Talvez mesmo nunca
tivesse apreciado uma festa completa. Manuelzão, em sua vida, nunca tinha
parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Agora, ei,
esperava alguma coisa.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º vol.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
terça-feira, 11 de setembro de 2012
sábado, 8 de setembro de 2012
OTELO E SANT'IAGO
TIO
COSME
Tio
Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como
prima Justina; era a casa dos três viúvos.
A
fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do
capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório
na antiga rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava
no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe
vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os
debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.
Era
gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas
recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe
lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira
segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto
seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o
primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito.
Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças
físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do
selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber
o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.
Também
não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde
vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha
medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando
me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo,
entrei a gritar desesperadamente: “Mamãe! mamãe!”. Ela acudiu, pálida e
trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me , afagou-me, enquanto o
irmão perguntava:
—
Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?
—
Não está acostumado.
—
Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte
a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os
outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, Mana Glória.
—
Pois que se queixe; tenho medo.
—
Medo! Ora, medo!
A
verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que
por vergonha de dizer que não sabia montar. “Agora é que ele vai namorar
deveras”, disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio
Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam
que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os
anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o
resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do
ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez
dizia pilhérias.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
EMANUEL E FEDERICO
Sobre
que se sabia o mais forte, dava de ombros, entretanto, assoado. Sua animação o
levava, crescente. Não que descuidasse, por uma hora sequer, o governo do mundo
dali: determinar aos campeiros e agregados a fazeção de cada dia. Mas, desde uns dois meses, quando principiara, media rude impulso, o fervor que o influía era
aquele. Primeiro, ter a capelinha pronta — uma ação durável, certa. Daí,
gastando um prazerzinho, tomara fôlego. Mas não bastava. Carecia da sagração, a
missa. A festa, uma festa! Por si, ele nunca dera uma festa. Talvez mesmo nunca
tivesse apreciado uma festa completa. Manuelzão, em sua vida, nunca tinha
parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Agora, ei,
esperava alguma coisa.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º vol.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
OS INCONFIDENTES
CARTA-DENÚNCIA
DE FRANCISCO ANTÔNIO DE OLIVEIRA LOPES; CACHOEIRA DO CAMPO, 19-05-1789.
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor
Dou
parte a Vossa Excelência por escrito do que já manifestei a Vossa Excelência
por palavras: Que o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza me havia dito que
ouvira ao Coronel Joaquim Silvério dos Reis, em casa do Capitão José de Resende
Costa, em ato de revista que passava o Tenente-Coronel João Carlos Xavier da
Silva Ferrão, e mais pessoas que se achavam na dita revista, que o dito Coronel
Joaquim Silvério dissera que esta terra podia ser um império, ser um país
liberto, e que nesta terra não havia homens, e que, se os houvesse, que em
pouco tempo seriam senhores da terra; e que ele, dito sargento-mor, se
despedira do Tenente-Coronel João Carlos e que se fora embora; e passados
alguns dias, fora o Coronel Joaquim Silvério a Vila de São José e lhe dissera
que, se ele queria encarregar-se de ir a fazer gente para as bandas de São
Paulo, que ele assistiria com o dinheiro, pois se houvesse um patrício que
fosse o libertador dos mais, que estava toda Vila Rica, Sabará, Serro e Minas
Novas, que tudo estava pronto; e que ele, dito sargento-mor, se opusera a isso:
“Que ele coronel se não metesse nisso que ficava perdido”, e que o
despersuadira com razões que, se não deixasse de tal intento, que dava parte; e
que o dito coronel lhe pedira com as mãos postas que não falasse o dito
sargento-mor, que ele prometia nunca mais falar em tal, o que lhe pedia como
amigo; e que, mais, lhe dissera o mesmo Coronel Joaquim Silvério que, vindo do
giro em que vinham de passar as revistas com o Tenente-Coronel João Carlos,
vindo de S. Tiago, em um alto parara o cavalo e dissera para os que vinham na
comitiva, (João Carlos, o Sargento-Mor Pestana, e outros mais): “Que mundo novo
não é este! Que país não seria este! O melhor do mundo!”; que o Tenente-Coronel
João Carlos picara o cavalo e fora andando, e que ao depois ele, dito
tenente-coronel, caíra em si do que havia dito.
E
indo eu à Vila de São José a ir depor em uma causa do Coronel Joaquim Silvério,
na volta quando nos vínhamos recolhendo, em caminho, me veio dizendo o
Sargento-Mor Luís Vaz o que acima relato; e eu disse ao mesmo sargento-mor que
logo viesse depor e que estas coisas se não deviam calar; e me respondeu o mesmo
sargento-mor que ele, dito coronel, lhe havia pedido com as mãos postas, que
semelhantes loucuras ali acabavam. Vi mais a este respeito uma carta de uma
senhora, freira de Santa Clara de Coimbra, escrita ao Sargento-Mor Joaquim
Pedro da Câmara, em que lhe dizia que se fosse embora para Portugal que esta
terra estava para se levantar; e que não quisesse ficar sujeito aos homens, e
que não deixasse o governo da Soberana; e esta carta me não mostrou o
sargento-mor por querer mostrar a novidade, porque isto tomou como loucura;
assim, mostrou-a, porque nela não falava em uma senhora que se achava no mesmo
Convento; e eu lhe disse que aquela carta se não devia mostrar a pessoa alguma,
à vista do Ajudante Tomás da Costa e do Capitão Antônio Nunes; ao que me respondeu
o sargento-mor: “Isto são loucuras de freiras, que os maganões lhe metem quatro
petas”; disto não dei logo parte a Vossa Excelência; como alguns passos se
passaram na presença do Tenente-Coronel João Carlos Xavier da Silva Ferrão,
Ajudante de Ordens de Vossa Excelência, devia capacitar-me que logo desse parte
a Vossa Excelência.
Excelentíssimo
Senhor, isso ponho na respeitável presença de Vossa Excelência como leal
vassalo, fiel e obediente às ordens da Soberana, para que Vossa Excelência dê
as providências que forem justas em segurança do Estado, assim como pelo posto
que ocupo.
Francisco
Antônio de Oliveira Lopes
Coronel
de São João del-Rei
Reconheço
a letra desta carta e firma abaixo ser tudo do próprio punho do Coronel
Francisco Antônio de Oliveira Lopes por outras semelhantes. Vila Rica, 15 de
junho de 1789.
José
Caetano César Manitti
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