sábado, 24 de agosto de 2013

G. RAMOS


Voltando-me, percebi ao meu lado o capitão Mata, expansivo, amável, a dizer-me coisas que não entendi bem. Formei sobre elas um juízo confuso, alterei-o e corrigi-me depois, mas a princípio, desatento e mudo, com certeza dei ao rapaz uma impressão lastimosa. Confessou-me que estava inocente e era vítima de enredos e maroteiras dos colegas; necessitava repisar isto, como se eu fosse julgá-lo: estava inocente. Oficial de polícia rebelde a entusiasmos, poeta por vocação. Como profissional, ficara alguns meses no Rio, em estágio lembrado com júbilo, mas fora como diletante que aí se notabilizara; num jantar, entre camaradas, recitara versos da sua lavra, e isto lhe dera largo prestígio. Essas informações misturavam-se a trechos de paisagem, diluíam-se, recompunham-se. Algumas sílabas que eu entremeava no solilóquio poderiam dar-lhe aparência de conversa ― e assim abrandávamos parte da viagem.

Logo nas primeiras estações três conhecidos surgiram, patentearam-se, ofereceram-me as últimas imagens que levo daquela terra. Se o meu companheiro não falasse demais, sempre a explicar-se, a justificar-se, sem dificuldade nos tomariam como passageiros comuns: o investigador, discreto, de nenhum modo nos comprometia. Mas as explicações e as justificações nos marcaram, chamaram a atenção de Benon Maia Gomes, diretor do Serviço de Algodão depois da bagunça de 1930; nesse tempo me aparecia às vezes na Imprensa Oficial, onde eu bocejava a olhar, sob um telheiro próximo, um homem que enchia dornas e uma mulher que lavava garrafas. Durante uns minutos de parada, Benon Maia Gomes censurou-me acrimonioso a desordem. Estava convencido de que o meu trabalho era uma desgraça. Murmurou e remurmurou, carrancudo, sombrio:

― Desordem, desorganização.

Mordi os beiços, contive-me, preguei os olhos num ponto afastado, imobilizei-me até que o trem se pôs em marcha. Outro conhecido, também visto de relance numa estação, foi o deputado José da Rocha. Ao ter conhecimento da infeliz notícia, recuou, temendo manchar-se, exclamou arregalado:

― Comunista!

Espanto, imenso desprezo, a convicção de achar-se na presença de um traidor. Absurdo: eu não podia considerar-me comunista, pois não pertencia ai Partido; nem era razoável agregar-me à classe em que o bacharel José da Rocha, usineiro, prosperava. Habituara-me cedo a odiar essa classe, e não escondia o ódio. Embora isto não lhe causasse nenhum prejuízo, era natural que, em hora de paixões acirradas, ela quisesse eliminar-me. O assombro do usineiro me pasmava ― e éramos duas surpresas. Nascido na propriedade e agüentando-se lá, sempre a serrar de cima, conquistando posições, bacharel, deputado, etc., não via razão para descontentamentos.
Com um sobressalto doloroso notava que eles existiam. Então os cérebros alheios funcionavam, e funcionavam contra os seus interesses, as moendas, os vácuos, os dínamos e os canaviais. Uma palavra apenas, e nela indignação, asco, uma raiva fria manifesta em rugas ligeiras:

― Comunista!

Este resumo aniquilava-me. Ingrato. E qualquer acréscimo, gesto ou vocábulo, era redundância. O terceiro encontro foi com Miguel Baptista, com quem me correspondera quando trabalhava na Prefeitura de Palmeira-dos-Índios e ele, diretor da Instrução Pública, fazia o recenseamento da população escolar. Agora, juiz de direito no interior, viajava para a sua comarca. Entrou no carro, abraçou-me em silêncio e foi sentar-se a pequena distância, de costas para mim. Não me olhou uma vez. No ponto de desembarque, entregues os pacotes ao carregador, veio abraçar-me de novo:

― Adeus, Fulano. Até a volta.

Confundi-me, gaguejei:

― Não, Baptista, eu não volto.

― Volta, sim. Isso é um equívoco, não tem importância. Dentro de uma semana tudo se esclarece. Adeus, seja feliz.

Foi pouco mais ou menos o que ele me disse ― e isto dissipou negrumes, hoje me dá uma recordação amável daquele dia. Na ausência de Baptista, indaguei-me. Se os nossos papéis estivessem trocados, haveria eu procedido como ele, acharia a maneira conveniente de expressar um voto generoso? Talvez não. Acanhar-me-ia, atirar-lhe-ia de longe uma saudação oblíqua, fingir-me-ia desatento. Essas descobertas de caracteres estranhos me levam a comparações muito penosas: analiso-me e sofro.

No calor e na poeira, o capitão Mata parolava distraindo-se e distraindo-me. Recitou um soneto, de que não percebi logo o intuito satírico. Caprichava na sintaxe, metrificava ironias à segurança pública : e em 1936 esse desrespeito podia considerar-se uma espécie de comunismo. No princípio da tarde o investigador Tavares acompanhou-me ao restaurante, mas o cheiro da comida me nauseava. Pedi cigarros e conhaque. Fumava sem descontinuar, a provisão do tabaco sumia-se rapidamente na valise . E necessitava beber. Isto não me abria o apetite. As picadas no estômago haviam desaparecido, e um entorpecimento se alargava, dava-me a impressão de que o órgão se extinguiria e eu viveria bem sem comer. A tontura da noite se sumira também: achava-me lúcido, a memória funcionava regularmente, e se Tavares não fosse da polícia, agradar-me-ia conversar com ele, recordar as sobrinhas do padre Raul, Portal-da-Barra, casos da mocidade. O que fiz foi confiar-lhe um bilhete para minha mulher. Na atrapalhação da partida, esquecera-me de um aviso importante. De fato não havia importância, mas ali, ausentando-me do mundo, começava a dar às coisas valores novos. Sucedia um desmoronamento. Indispensável retirar dele migalhas de vida, cultivá-las e ampliá-las. De outro modo, seria o desastre completo, o mergulho definitivo. Assim, lembrei-me de uma carta recebida poucos dias antes da Argentina. Benjamin Garay andava a traduzir-me um livro, a dizer que o traduzia, e forçava-me a gastar papel e tempo numa correspondência longa. Ultimamente me exigira colaboração para não sei que revista de Buenos-Aires. Pensei num conto deixado na gaveta, sapecado, cheio de abundantes minúcias exasperadoras, e, a lápis, em pedacinhos de papel arrancados da carteira, sugeri a minha mulher que tirasse duas cópias dele e mandasse uma a Garay. Bebendo conhaque, vendo em colinas e planícies desdobrarem-se canaviais, parecia-me haver escrito a alguém que se tivesse desligado quase completamente de mim. Na verdade a separação não era completa. Os desgostos diários e a serenidade lacrimosa da manhã fundiam-se naquele torpor que principiava no estômago, se alargava, mergulhava todo o corpo em sombria indiferença. Mas havia os filhos: precisava cuidar deles. Como? Ali a rodar nos trilhos da Great Western, os versos de Bandeira ecoando no ganzá da locomotiva: “Passa boi, passa boiada”, usinas sucedendo-se no campo verde, a do dr. José da Rocha e as de outros doutores, achava-me inútil, preguiçoso e estúpido.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens.
(obra póstuma)
José Olympio. Rio de Janeiro.

1953.