Voltando-me,
percebi ao meu lado o capitão Mata, expansivo, amável, a dizer-me coisas que
não entendi bem. Formei sobre elas um juízo confuso, alterei-o e corrigi-me
depois, mas a princípio, desatento e mudo, com certeza dei ao rapaz uma
impressão lastimosa. Confessou-me que estava inocente e era vítima de enredos e
maroteiras dos colegas; necessitava repisar isto, como se eu fosse julgá-lo:
estava inocente. Oficial de polícia rebelde a entusiasmos, poeta por vocação.
Como profissional, ficara alguns meses no Rio, em estágio lembrado com júbilo,
mas fora como diletante que aí se notabilizara; num jantar, entre camaradas,
recitara versos da sua lavra, e isto lhe dera largo prestígio. Essas
informações misturavam-se a trechos de paisagem, diluíam-se, recompunham-se.
Algumas sílabas que eu entremeava no solilóquio poderiam dar-lhe aparência de
conversa ― e assim abrandávamos parte da viagem.
Logo
nas primeiras estações três conhecidos surgiram, patentearam-se, ofereceram-me
as últimas imagens que levo daquela terra. Se o meu companheiro não falasse demais,
sempre a explicar-se, a justificar-se, sem dificuldade nos tomariam como
passageiros comuns: o investigador, discreto, de nenhum modo nos comprometia.
Mas as explicações e as justificações nos marcaram, chamaram a atenção de Benon
Maia Gomes, diretor do Serviço de Algodão depois da bagunça de 1930; nesse
tempo me aparecia às vezes na Imprensa Oficial, onde eu bocejava a olhar, sob
um telheiro próximo, um homem que enchia dornas e uma mulher que lavava
garrafas. Durante uns minutos de parada, Benon Maia Gomes censurou-me
acrimonioso a desordem. Estava convencido de que o meu trabalho era uma
desgraça. Murmurou e remurmurou, carrancudo, sombrio:
―
Desordem, desorganização.
Mordi
os beiços, contive-me, preguei os olhos num ponto afastado, imobilizei-me até
que o trem se pôs em marcha. Outro conhecido, também visto de relance numa
estação, foi o deputado José da Rocha. Ao ter conhecimento da infeliz notícia,
recuou, temendo manchar-se, exclamou arregalado:
―
Comunista!
Espanto,
imenso desprezo, a convicção de achar-se na presença de um traidor. Absurdo: eu
não podia considerar-me comunista, pois não pertencia ai Partido; nem era
razoável agregar-me à classe em que o bacharel José da Rocha, usineiro, prosperava.
Habituara-me cedo a odiar essa classe, e não escondia o ódio. Embora isto não
lhe causasse nenhum prejuízo, era natural que, em hora de paixões acirradas,
ela quisesse eliminar-me. O assombro do usineiro me pasmava ― e éramos duas
surpresas. Nascido na propriedade e agüentando-se lá, sempre a serrar de cima,
conquistando posições, bacharel, deputado, etc., não via razão para
descontentamentos.
Com
um sobressalto doloroso notava que eles existiam. Então os cérebros alheios
funcionavam, e funcionavam contra os seus interesses, as moendas, os vácuos, os
dínamos e os canaviais. Uma palavra apenas, e nela indignação, asco, uma raiva
fria manifesta em rugas ligeiras:
―
Comunista!
Este
resumo aniquilava-me. Ingrato. E qualquer acréscimo, gesto ou vocábulo, era
redundância. O terceiro encontro foi com Miguel Baptista, com quem me
correspondera quando trabalhava na Prefeitura de Palmeira-dos-Índios e ele,
diretor da Instrução Pública, fazia o recenseamento da população escolar. Agora,
juiz de direito no interior, viajava para a sua comarca. Entrou no carro,
abraçou-me em silêncio e foi sentar-se a pequena distância, de costas para mim.
Não me olhou uma vez. No ponto de desembarque, entregues os pacotes ao
carregador, veio abraçar-me de novo:
―
Adeus, Fulano. Até a volta.
Confundi-me,
gaguejei:
―
Não, Baptista, eu não volto.
―
Volta, sim. Isso é um equívoco, não tem importância. Dentro de uma semana tudo
se esclarece. Adeus, seja feliz.
Foi
pouco mais ou menos o que ele me disse ― e isto dissipou negrumes, hoje me dá
uma recordação amável daquele dia. Na ausência de Baptista, indaguei-me. Se os
nossos papéis estivessem trocados, haveria eu procedido como ele, acharia a
maneira conveniente de expressar um voto generoso? Talvez não. Acanhar-me-ia,
atirar-lhe-ia de longe uma saudação oblíqua, fingir-me-ia desatento. Essas
descobertas de caracteres estranhos me levam a comparações muito penosas:
analiso-me e sofro.
No
calor e na poeira, o capitão Mata parolava distraindo-se e distraindo-me. Recitou
um soneto, de que não percebi logo o intuito satírico. Caprichava na sintaxe,
metrificava ironias à segurança pública : e em 1936 esse desrespeito podia
considerar-se uma espécie de comunismo. No princípio da tarde o investigador
Tavares acompanhou-me ao restaurante, mas o cheiro da comida me nauseava. Pedi
cigarros e conhaque. Fumava sem descontinuar, a provisão do tabaco sumia-se
rapidamente na valise . E necessitava beber. Isto não me abria o apetite. As
picadas no estômago haviam desaparecido, e um entorpecimento se alargava,
dava-me a impressão de que o órgão se extinguiria e eu viveria bem sem comer. A
tontura da noite se sumira também: achava-me lúcido, a memória funcionava
regularmente, e se Tavares não fosse da polícia, agradar-me-ia conversar com
ele, recordar as sobrinhas do padre Raul, Portal-da-Barra, casos da mocidade. O
que fiz foi confiar-lhe um bilhete para minha mulher. Na atrapalhação da
partida, esquecera-me de um aviso importante. De fato não havia importância,
mas ali, ausentando-me do mundo, começava a dar às coisas valores novos.
Sucedia um desmoronamento. Indispensável retirar dele migalhas de vida,
cultivá-las e ampliá-las. De outro modo, seria o desastre completo, o mergulho
definitivo. Assim, lembrei-me de uma carta recebida poucos dias antes da
Argentina. Benjamin Garay andava a traduzir-me um livro, a dizer que o
traduzia, e forçava-me a gastar papel e tempo numa correspondência longa.
Ultimamente me exigira colaboração para não sei que revista de Buenos-Aires.
Pensei num conto deixado na gaveta, sapecado, cheio de abundantes minúcias
exasperadoras, e, a lápis, em pedacinhos de papel arrancados da carteira,
sugeri a minha mulher que tirasse duas cópias dele e mandasse uma a Garay.
Bebendo conhaque, vendo em colinas e planícies desdobrarem-se canaviais,
parecia-me haver escrito a alguém que se tivesse desligado quase completamente
de mim. Na verdade a separação não era completa. Os desgostos diários e a
serenidade lacrimosa da manhã fundiam-se naquele torpor que principiava no estômago,
se alargava, mergulhava todo o corpo em sombria indiferença. Mas havia os filhos:
precisava cuidar deles. Como? Ali a rodar nos trilhos da Great Western, os
versos de Bandeira ecoando no ganzá da locomotiva: “Passa boi, passa boiada”,
usinas sucedendo-se no campo verde, a do dr. José da Rocha e as de outros
doutores, achava-me inútil, preguiçoso e estúpido.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. Viagens.
(obra
póstuma)
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1953.