sábado, 3 de agosto de 2013

G. RAMOS


À saída encontrei o Tavares, conhecido velho do tempo de rapaz, agora investigador da polícia. Disse-me que tinha ordem de levar-me ao Recife e perguntou-me se queria um carro. A pergunta revelava estranha sovinice: pareceu-me que, preso, não me cabia pagar transporte; e, se fôssemos a pé, não alcançaríamos o trem. Senti-me lesado, mas respondi afirmativamente ― e foi esta a última a última relação que tive com os poderes públicos de Alagoas.

Saltamos na estação da Great Western. Quereriam obrigar-me a comprar passagem? Não falaram nisso ― e respirei, isento de responsabilidades. Na plataforma vi chegar um homenzinho moreno, cheio de tiques risonhos, que segurava uma grande mala e se apresentou: capitão Mata, meu companheiro de viagem.

― Vai conduzir-me ao Recife?

Não, ia também conduzido. Entramos no vagão de primeira classe. Na ante-véspera Sebastião Hora, médico, presidente da Aliança Nacional, fora metido entre operários, atravessara a cidade carregando a bagagem e viajara de segunda, com as portas trancadas. Ao sentar-me, descobri minha mulher na lufa-lufa dos passageiros. Vinha pálida e chorava aquele choro fácil, sereno, que não lhe contrai um músculo, choro superficial, tão diferente dos meus: arrancos interiores, repuxos medonhos no diafragma, ordinariamente sem lágrimas. Diante do rosto molhado e calmo, as desavenças esmoreceram. Perturbado, gaguejei  algumas recomendações sobre a mudança dela para a casa do pai, falei nas crianças e, lembrando-me de que a deixara sem recursos, abri a carteira, exibi o conteúdo e entreguei-lhe metade. Levava comigo seiscentos mil-réis, pois não sabia em que apertos me iria achar. Aconselhei-a a vender os móveis e uma pequena propriedade que tínhamos. Pensei no romance inédito e, receando buscas, pedi-lhe que, ao recebê-lo de d. Jeni, guardasse o manuscrito numa casa e a cópia noutra. Esgotados esses assuntos, pus-me a repisá-los, constrangido, desgostoso com o pranto sossegado, invariável, acusando-me interiormente de ter sido grosseiro na véspera. Recebi um pacote de troços miúdos e meti-o na valise. Numa portinhola adiante, capitão Mata despedia-se alegremente de umas senhoras despreocupadas, naturais, como se julgassem a prisão dele um fato comum, acidente de quartel. Derradeiro apito, derradeiro abraço, derradeiras repetições, um solavanco ― e achei-me curvado para fora, a agitar-me o braço, vendo uma figura branca e imóvel decrescer até sumir-se.

Nenhuma saudade, nenhuma dessas meiguices românticas, enervadoras: sentia-me atordoado, como se me dessem um murro na cabeça. Julgava-me autor de várias culpas, mas não sabia determiná-las. Arrependia-me vagamente de asperezas e injustiças, ao mesmo tempo supunha-me fraco, a escorregar em condescendências inúteis, e queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período ― riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas. Aquela viagem era uma dádiva imprevista. Estivera a desejá-la intensamente, considerando-a difícil, quase irrealizável e alcançava-a de repente. Sucedera-me um desastre, haviam pretendido causar-me grande mal ― o mal e o desastre ofereciam-me um princípio de libertação. Os dois choques seguidos, desemprego e cadeia, e também os telegramas ofensivos eram úteis: perturbavam-me, embrulhavam casos enfadonhos, obrigavam-me a um salto arriscado, e nessa deslocação datas e fisionomias se toldavam de espessa névoa. Parecia-me que saldava uma dívida, me livrava de pesos interiores. Qualquer favor acaso ali recebido findava. Bom que me deixassem partir esquecido e em silêncio: estávamos quites. E nesse ajuste de contas figuravam governo e particulares. Sem guardar ressentimento, aliviava-me de obrigações.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º vol. Viagens. (Obra póstuma).

José Olympio. 1ª edição. 1953.