À
saída encontrei o Tavares, conhecido velho do tempo de rapaz, agora
investigador da polícia. Disse-me que tinha ordem de levar-me ao Recife e
perguntou-me se queria um carro. A pergunta revelava estranha sovinice:
pareceu-me que, preso, não me cabia pagar transporte; e, se fôssemos a pé, não
alcançaríamos o trem. Senti-me lesado, mas respondi afirmativamente ― e foi
esta a última a última relação que tive com os poderes públicos de Alagoas.
Saltamos
na estação da Great Western. Quereriam obrigar-me a comprar passagem? Não
falaram nisso ― e respirei, isento de responsabilidades. Na plataforma vi
chegar um homenzinho moreno, cheio de tiques risonhos, que segurava uma grande
mala e se apresentou: capitão Mata, meu companheiro de viagem.
―
Vai conduzir-me ao Recife?
Não,
ia também conduzido. Entramos no vagão de primeira classe. Na ante-véspera
Sebastião Hora, médico, presidente da Aliança Nacional, fora metido entre
operários, atravessara a cidade carregando a bagagem e viajara de segunda, com
as portas trancadas. Ao sentar-me, descobri minha mulher na lufa-lufa dos
passageiros. Vinha pálida e chorava aquele choro fácil, sereno, que não lhe
contrai um músculo, choro superficial, tão diferente dos meus: arrancos
interiores, repuxos medonhos no diafragma, ordinariamente sem lágrimas. Diante
do rosto molhado e calmo, as desavenças esmoreceram. Perturbado, gaguejei algumas recomendações sobre a mudança dela
para a casa do pai, falei nas crianças e, lembrando-me de que a deixara sem
recursos, abri a carteira, exibi o conteúdo e entreguei-lhe metade. Levava
comigo seiscentos mil-réis, pois não sabia em que apertos me iria achar.
Aconselhei-a a vender os móveis e uma pequena propriedade que tínhamos. Pensei
no romance inédito e, receando buscas, pedi-lhe que, ao recebê-lo de d. Jeni,
guardasse o manuscrito numa casa e a cópia noutra. Esgotados esses assuntos,
pus-me a repisá-los, constrangido, desgostoso com o pranto sossegado,
invariável, acusando-me interiormente de ter sido grosseiro na véspera. Recebi
um pacote de troços miúdos e meti-o na valise. Numa portinhola adiante, capitão
Mata despedia-se alegremente de umas senhoras despreocupadas, naturais, como se
julgassem a prisão dele um fato comum, acidente de quartel. Derradeiro apito,
derradeiro abraço, derradeiras repetições, um solavanco ― e achei-me curvado
para fora, a agitar-me o braço, vendo uma figura branca e imóvel decrescer até
sumir-se.
Nenhuma
saudade, nenhuma dessas meiguices românticas, enervadoras: sentia-me atordoado,
como se me dessem um murro na cabeça. Julgava-me autor de várias culpas, mas
não sabia determiná-las. Arrependia-me vagamente de asperezas e injustiças, ao
mesmo tempo supunha-me fraco, a escorregar em condescendências inúteis, e
queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando
emendo um período ― riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir
todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas. Aquela viagem era
uma dádiva imprevista. Estivera a desejá-la intensamente, considerando-a
difícil, quase irrealizável e alcançava-a de repente. Sucedera-me um desastre,
haviam pretendido causar-me grande mal ― o mal e o desastre ofereciam-me um
princípio de libertação. Os dois choques seguidos, desemprego e cadeia, e
também os telegramas ofensivos eram úteis: perturbavam-me, embrulhavam casos
enfadonhos, obrigavam-me a um salto arriscado, e nessa deslocação datas e
fisionomias se toldavam de espessa névoa. Parecia-me que saldava uma dívida, me
livrava de pesos interiores. Qualquer favor acaso ali recebido findava. Bom que
me deixassem partir esquecido e em silêncio: estávamos quites. E nesse ajuste de
contas figuravam governo e particulares. Sem guardar ressentimento, aliviava-me
de obrigações.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
vol. Viagens. (Obra póstuma).
José
Olympio. 1ª edição. 1953.