Procurei
um mictório nas paredes lisas, cheguei-me à porta, desci à calçada, passei em
frente do manequim teso, sem me decidir a perguntar-lhe quantos metros o fio
que me amarrava poderia estender-se: provavelmente, nas funções de espantalho,
a criatura emudecia. Avizinhei-me do pátio coberto de manchas de sombra e luz.
Regressei ao cabo de um minuto, busquei o lavatório, achei uma pequena moringa
e um copo. A higiene satisfazia-se com isso. Voltei a estender-me no colchão,
fatigado, cochilei algum tempo, confundi o real e o imaginário, os olhos
protegidos pela aba do chapéu. Despertava, fumava, distinguia o estafermo e o
fuzil, imaginava, olhando-os de perto, vendo a carranca e o brilho do metal,
que haviam sido ali postos para amedrontar-me. Recurso infantil: conjecturei
crianças barbadas, ingênuas e maliciosas. O pobre homem devia estar cansado.
Seria o mesmo do começo ou teria vindo outro durante os cochilos? Havia-me
escapado a substituição. Também me escapavam próximos rumores possíveis:
gemidos do vento nas árvores do pátio, a marcha lenta da ronda. Realmente não
me lembro de árvores nem da ronda: isto é suposição. Esqueci pormenores, ou não
os observei.
Ter-me-ia
revelado inquieto? Pouco me importava o conceito que a sentinela pudesse ter
dos meus movimentos excessivos, nem me ocorria que o infeliz, tão parado,
tivesse conceitos. Mas na verdade a inquietação era puramente física: difícil
permanecer num lugar; precisão de levantar-me, sentar-me, deitar-me, fumar; a
ligeira sonolência perturbada vezes sem conta e a leitura das mesmas páginas de
José Geraldo Vieira. Parecia-me faltar a um dever. Habituara-me a ler todos os
livros que me remetiam, ali estavam três a desafiar-me em longa insônia, e
era-me impossível fixar a atenção neles. As idéias partiam-se a cada instante,
desagregavam-se. Picadas no estômago. Fome. Não, não era fome: nem conseguiria
mastigar qualquer coisa. Só pensar em comida me dava enjôo. Interiormente
achava-me tranqüilo. Ou antes, achava-me indiferente. Sumia-se até a
curiosidade inicial. Que peça me iriam pregar no dia seguinte? Julgo que não
perguntei isso. Realmente era desagradável continuar naquela saleta nua, a
procurar nas paredes um lavatório e um mictório inexistentes. Mas noutro canto
arranjar-me-ia. Operava-se assim, em poucas horas, a transformação que a cadeia
nos impõe: a quebra da vontade. E não me espantei quando, manhãzinha, me vieram
tirar de uma leve modorra:
―
Prepare-se para viajar.
Saltei
da cama; utilizando o copo e a moringa, escovei os dentes, lavei o rosto,
molhei os cabelos; penteei-me, agarrei a valise e os três volumes:
―
Está bem.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. Viagens.
(obra
póstuma).
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.