quarta-feira, 10 de julho de 2013

G. RAMOS


Procurei um mictório nas paredes lisas, cheguei-me à porta, desci à calçada, passei em frente do manequim teso, sem me decidir a perguntar-lhe quantos metros o fio que me amarrava poderia estender-se: provavelmente, nas funções de espantalho, a criatura emudecia. Avizinhei-me do pátio coberto de manchas de sombra e luz. Regressei ao cabo de um minuto, busquei o lavatório, achei uma pequena moringa e um copo. A higiene satisfazia-se com isso. Voltei a estender-me no colchão, fatigado, cochilei algum tempo, confundi o real e o imaginário, os olhos protegidos pela aba do chapéu. Despertava, fumava, distinguia o estafermo e o fuzil, imaginava, olhando-os de perto, vendo a carranca e o brilho do metal, que haviam sido ali postos para amedrontar-me. Recurso infantil: conjecturei crianças barbadas, ingênuas e maliciosas. O pobre homem devia estar cansado. Seria o mesmo do começo ou teria vindo outro durante os cochilos? Havia-me escapado a substituição. Também me escapavam próximos rumores possíveis: gemidos do vento nas árvores do pátio, a marcha lenta da ronda. Realmente não me lembro de árvores nem da ronda: isto é suposição. Esqueci pormenores, ou não os observei.

Ter-me-ia revelado inquieto? Pouco me importava o conceito que a sentinela pudesse ter dos meus movimentos excessivos, nem me ocorria que o infeliz, tão parado, tivesse conceitos. Mas na verdade a inquietação era puramente física: difícil permanecer num lugar; precisão de levantar-me, sentar-me, deitar-me, fumar; a ligeira sonolência perturbada vezes sem conta e a leitura das mesmas páginas de José Geraldo Vieira. Parecia-me faltar a um dever. Habituara-me a ler todos os livros que me remetiam, ali estavam três a desafiar-me em longa insônia, e era-me impossível fixar a atenção neles. As idéias partiam-se a cada instante, desagregavam-se. Picadas no estômago. Fome. Não, não era fome: nem conseguiria mastigar qualquer coisa. Só pensar em comida me dava enjôo. Interiormente achava-me tranqüilo. Ou antes, achava-me indiferente. Sumia-se até a curiosidade inicial. Que peça me iriam pregar no dia seguinte? Julgo que não perguntei isso. Realmente era desagradável continuar naquela saleta nua, a procurar nas paredes um lavatório e um mictório inexistentes. Mas noutro canto arranjar-me-ia. Operava-se assim, em poucas horas, a transformação que a cadeia nos impõe: a quebra da vontade. E não me espantei quando, manhãzinha, me vieram tirar de uma leve modorra:

― Prepare-se para viajar.

Saltei da cama; utilizando o copo e a moringa, escovei os dentes, lavei o rosto, molhei os cabelos; penteei-me, agarrei a valise e os três volumes:

― Está bem.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens.
(obra póstuma).
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1953.