terça-feira, 30 de julho de 2013

EMANUEL E FEDERICO


E a gente, bom povo. Não falavam mole, como os do Centro, nem assurdado remancheado feito os do Alto-Oeste, sua terra. Falavam limpo, duro. Eram diversos. Povo alegre, ressecado. Manuelzão era que, no meio deles, às vezes se sentia mais capiau. E, no começo, ele mais sua meia-dúzia de pessoal trazido do Maquiné, quase que muita coisa não entendiam bem, quando aqueles dali falavam. Linguajar com muitas outras palavras: em vez de “segunda-feira”, “terça-feira”, era “desamenhã é dia-de-terça, dia-de-quarta; em vez de “parar”, só falavam “esbarrar” ― parece que nem sabiam o que é que “parar” significava; em vez de dizerem “na frente, lá, ali adiente”, era “acolá, e “acolá-em-cima”; e “p’r’acolá”, e “acoli, p’r’ acoli ― quando era para trás, ou ali adiente de lado... Estimavam por demais o nhambu, pássaro que tratavam com todo carinho, que diziam assim: “a nhambuzinha”... Gente de boa razão, seja com o chapéu-de-couro seja com chapéu de seda de buriti ―  eles não se importavam muito com as maldades do tempo. Manuelzão nos usos deles já se ajeitava. Aquele poder de gente, por ali, chegando para a festa, todos o olhavam com admiração e aspeto. Mundo grande! Mas, ainda muito maior, quando a gente podia estar em sua casa, e os outros vinham, empoeirados de sete maneiras, por estradas sertanias ― e pediam um café, um gole d’água. Cada um tinha visto muita coisa, e só contava o que valesse. ― “Lá chove, e cá corre...” A gente mesmo, na estrada, não acostuma com as coisas, não dá tempo. Para bem narrar uma viagem, quase que se tinha necessidade de inventar a devoção de uma mentira. E gabar mais os sofridos ― que de si já eram tantos. ― “Eh, mundão! Quem me mata é Deus, que me come é o chão!...” ― como no truque. Arre, o ruim, o duro da vida, é da gente. Não se destroca. Tudo tinha de ir junto. Como no canto do vaqueiro:

“― Eu mais o meu companheiro
vamos bem emparelhados:
eu me chamo Vira-Mundo,
e ele é Mundo-Virado...”  

Que nem o velho Camilo, até vinha à idéia. Por que era que ele, Manuelzão, derradeiramente, reparava tanto no velho Camilo? Quem dirá, afora mesmo ele, somente o velho Camilo estaria advertindo em sua mãe, senhora, enterrada lá no alto, pegado à capelinha ― mas as alma dela, seu entender de tudo, parava era no Céu. Embora, o sentimento por dentro, que Manuelzão pensava, era o de um sendo-sucedido estúrdio: que esse velho Camilo, no diário dos dias, ali na Samarra, se pertencia justo, criatura trivial; mas, agora, descabido no romper da festa, ele perdia o significado de ser ― semelhava um errante, quase um morto. Porque, assim, clareada uma festa, o velho Camilo se demonstrava a pessoa separada no desconforme pior: botada sozinha no alto da velhice e da miséria.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
Corpo de Baile, I. José Olympio.

Rio de Janeiro. 1ª edição. 1956.