E
a gente, bom povo. Não falavam mole, como os do Centro, nem assurdado
remancheado feito os do Alto-Oeste, sua terra. Falavam limpo, duro. Eram
diversos. Povo alegre, ressecado. Manuelzão era que, no meio deles, às vezes se
sentia mais capiau. E, no começo, ele mais sua meia-dúzia de pessoal trazido do
Maquiné, quase que muita coisa não entendiam bem, quando aqueles dali falavam.
Linguajar com muitas outras palavras: em vez de “segunda-feira”, “terça-feira”,
era “desamenhã é dia-de-terça,
dia-de-quarta; em vez de “parar”, só falavam “esbarrar” ― parece que nem sabiam o que é que “parar” significava;
em vez de dizerem “na frente, lá, ali adiente”, era “acolá, e “acolá-em-cima”; e
“p’r’acolá”, e “acoli, p’r’ acoli ― quando era para trás, ou ali adiente de
lado... Estimavam por demais o nhambu, pássaro que tratavam com todo carinho,
que diziam assim: “a nhambuzinha”...
Gente de boa razão, seja com o chapéu-de-couro seja com chapéu de seda de
buriti ― eles não se importavam muito com as maldades
do tempo. Manuelzão nos usos deles já se ajeitava. Aquele poder de gente, por
ali, chegando para a festa, todos o olhavam com admiração e aspeto. Mundo
grande! Mas, ainda muito maior, quando a gente podia estar em sua casa, e os
outros vinham, empoeirados de sete maneiras, por estradas sertanias ― e pediam
um café, um gole d’água. Cada um tinha visto muita coisa, e só contava o que
valesse. ― “Lá chove, e cá corre...”
A gente mesmo, na estrada, não acostuma com as coisas, não dá tempo. Para bem
narrar uma viagem, quase que se tinha necessidade de inventar a devoção de uma
mentira. E gabar mais os sofridos ― que de si já eram tantos. ― “Eh, mundão! Quem me mata é Deus, que me
come é o chão!...” ― como no truque. Arre, o ruim, o duro da vida, é da
gente. Não se destroca. Tudo tinha de ir junto. Como no canto do vaqueiro:
“― Eu mais o meu companheiro
vamos bem emparelhados:
eu me chamo Vira-Mundo,
e ele é Mundo-Virado...”
Que
nem o velho Camilo, até vinha à idéia. Por que era que ele, Manuelzão,
derradeiramente, reparava tanto no velho Camilo? Quem dirá, afora mesmo ele,
somente o velho Camilo estaria advertindo em sua mãe, senhora, enterrada lá no
alto, pegado à capelinha ― mas as alma dela, seu entender de tudo, parava era
no Céu. Embora, o sentimento por dentro, que Manuelzão pensava, era o de um
sendo-sucedido estúrdio: que esse velho Camilo, no diário dos dias, ali na
Samarra, se pertencia justo, criatura trivial; mas, agora, descabido no romper
da festa, ele perdia o significado de ser ― semelhava um errante, quase um
morto. Porque, assim, clareada uma festa, o velho Camilo se demonstrava a
pessoa separada no desconforme pior: botada sozinha no alto da velhice e da
miséria.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile, I. José Olympio.
Rio
de Janeiro. 1ª edição. 1956.