quarta-feira, 3 de julho de 2013

EMANUEL E FEDERICO

Manuelzão, como os dois campeiros escutava, não conseguia ser mais forte do que aquelas novidades. ―  “Estória!” ― ele disse, então. Pois, minhamente: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a gente ouvia cantada a narração dos outros, de volta de viagens. Muito maior do que quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a maior parte do que acontecia era cansativo e dos tristonhos, tudo trabalho empatoso, a gente era sofrendo e tendo de aturar, que nem um boi, daqueles tangidos no acerto escravo de todos, sem soberania de sossego. A vida não larga, mas a vida não farta. Só se feito a João Urúgem, revertido ao sempre, cabelama caindo pelos ombros, o nu, as unhas. Para esse o tempo podia passar, que não adiantava. Quieto num canto, virado bicho. Mas um existir assim os olhos dos outros não mediam. Ele, Manuel J. Roíz, vivera lidando com a continuação, desde o simples de menino. Varara nas águas. Boiadeiro em cima da sela, dando altas despedidas, sabendo saudade em beira de fogo, frias noites, nos ranchos. Até para sofrer, a gente carece de quietação. Para sofrer com capricho, acondicionado, no campo de se rever. Viageiro vai adiando. Só o medo da miséria do uso ― um medo constante, acordado e dormindo, anoitecendo, amanhecendo. Já o pai de Manuelzão tinha sido roceiro, pobrezinho, no Mim, na Mata. Todas terras tão diferentes, tão longe daqui, tão diferente tudo, muita qualidade dos bichos, os paus, os pássaros. Mas o pai de Manuelzão concordava de ser pobre, instruído nas resignações; ele trabalhava e se divertia olhando só para o chão, em noitinha sentava para fumar um cigarro, na porta da choupana, e cuspia muito. Tinha medo até do Céu. Morreu.

De desde menino, no buraco da miséria. Divisou a lida com gado, transitar as boiadas. Mas, agora, viera bem chegado, àquele aberto sertão, onde havia de se acrescentar, onde esquecia os passados. ― “Lá é Cristo, e cá é isto...” Tinha a confiança de Federico Freyre, era expedito no leal. Tinha vindo em oco: ― “E desci cá p’ra baixo, como se diz, como diz o negócio: pedindo e roubando...” Mas ali trabalhava, lei de seu bom sentir. E prosperava. ― “Nós já espichemos por aí uns duzentos, trezentos rolos de arame...” Mais havia de redondear aquilo, fazenda grande confirmada. Cerca de arame de três fios; e levavam gado. Com a banda boa da sorte. Sorte: a Capelinha e esta Festa davam a melhor prova!

Sertão. O lugar era bonito. O céu subia mais ostentoso, mais avistado do que na Mata do Oeste, azuloso com uns azinhavres, ali o céu parecia mesmo o Céu, de Deus, dos Anjos. E o pasto reinava bom, sem carrapatos, sem moscas de berne, sem pragas. Ao bater daquela enorme luz, o ar um mar seco. Em setembro ou outubro, o gado aqui estava mais gordo do que no Maquiné; porque os fracos, mesmo, morriam logo. O frio se engrossava bom, fazia para a saúde.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1956.