“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor...”
Lupicínio Rodrigues
No vasto campo das
relações literárias franco-brasileiras, não é de estranhar que, na mesma época,
dois autores, mesmo sem se ter lido ou conhecido, tenham produzido obras-primas
ligadas ao ciúme masculino, recorrendo a fontes de leitura comuns. Assim, em
1899, Machado nos dá a conhecer Dom
Casmurro, e, em 1908, Proust começa a redação de No Caminho de Swann (1913), onde encontramos o romancete Um Amor de Swann.
O tema — com ser velho —
ganha nova dimensão graças ao interesse crescente pela mulher tanto no campo da
Psicologia quanto no da Fisiologia, sem se esquecer o da saúde pública. Seus
desdobramentos farão que se corporifique ainda com maior força a figura da
Mulher Fatal, que em sua faceta moderna e profana se corporifica nas figuras da
cigana Carmen e da atriz-prostituta Naná (1879-1880).
Nossos autores estão sob a
égide da Belle Époque, que, como
sabemos, marca um dos momentos de maior imantação da cultura brasileira pela
francesa. As questões debatidas na França encontram eco nas preocupações
brasileiras: assim a consolidação da República, a idéia de progresso
sócio-cultural, a salvaguarda da saúde pública e, no campo artístico, o
esteticismo e a expressão da “identidade” feminina, entre outros. O momento,
por tanto, era propício ao desenvolvimento literário da estupefação do homem
diante do sexo oposto, cujo mistério insondável ultrapassava os limites de uma
sexualidade consentânea com a vida burguesa, ingressando, em alguns casos, no
campo do lesbianismo.
A perspectiva machadiana —
na esteira dos perfis femininos de Alencar — já compreendia uma grande
personagem inquietante, Sofia, cuja continuidade é negada pelo autor, conforme
podemos ler no prólogo à terceira edição de Quincas Borba (1899):
A Sofia está aqui toda. Continuá-la seria
repeti-la, e acaso repetir o mesmo seria pecado.
Daí a mudança de
perspectiva da nova narrativa: estamos diante de um marido ciumento, para quem a esposa pertence ao domínio da
malícia e da “traição”. No entanto, a mulher — com toda sua carga de
negatividade — não é encontrada na rua, como tantas cortesãs ou atrizes
sustentadas por um homem rico, mas traz os elementos delas provenientes os
quais — ainda que matizados — não deixarão de atuar no imaginário masculino,
donde o ciúme, motor da história e motivo de uma das frases finais de Capitu:
— Pois até os defunctos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!”
Para a amiga da infância
tornar-se perigosa, mister se fazia uma caracterização em que avultassem
elementos ligados a mulheres inquietantes e destruidoras. O conúbio
representado por familiaridade fluminense e importação francesa interessa de
perto. Ele é a base da representação da suspeita que, aos poucos, vai solapando
a relação entre Bentinho e Capitu, fazendo que a plasmação da figura feminina
passe obrigatoriamente pela tradição literária do tema, que Machado irá adaptar
aos interesses de sua economia narrativa.
Philippe Chardin
mostra-nos que, ao contrário da visão clássica ligando o ciúme a dados
universais e atemporais, grande parte da literatura moderna vincula tal
sentimento ao aspecto social em que ele surge, sendo mesmo um dos principais
interesses das obras da Belle Époque.
Ora, uma das figuras mais importantes nesse momento, como caracterização do
transbordamento feminino é Carmen, tornada realmente popular graças à ópera de
Bizet (1875).
Imediatamente vem ao
espírito do leitor brasileiro a expressão denunciadora da inquietação provocada
por Capitu, os olhos “de cigana oblíqua e dissimulada”, segundo a descrição de
José Dias. O texto de Mérimée, descrevendo o rosto dos ciganos, constitui a
fonte machadiana:
Leurs yeux sensiblement
obliques, bien fendus, très noirs, sont ombragés par des cils longs et épais.
(Seus olhos sensivelmente oblíquos, bem rasgados,
muito negros, são escurecidos por cílios longos e espessos.)
Além do aspecto físico, o
dado social inclui a origem inferior da mulher fatal, tal como a cigana
(Carmen) em relação ao nobre de província (Don
José), propiciando, na obra brasileira, a necessidade que tem o narrador /
Bentinho de pontuar a ascensão social de Capitu, pelo casamento:
A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o
ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para
andar na rua, tudo me mostrou que a
causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não
lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto
do mundo também. (Dom Casmurro).
Gilberto Pinheiro Passos
Sob o Signo do Ciúme:
Bentinho e Charles Swann
em Machado de Assis —
ensaios da crítica contemporânea
Editora Unesp. São Paulo
(SP). 2008.