quarta-feira, 6 de junho de 2012

MACHADO


“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor...”

Lupicínio Rodrigues


No vasto campo das relações literárias franco-brasileiras, não é de estranhar que, na mesma época, dois autores, mesmo sem se ter lido ou conhecido, tenham produzido obras-primas ligadas ao ciúme masculino, recorrendo a fontes de leitura comuns. Assim, em 1899, Machado nos dá a conhecer Dom Casmurro, e, em 1908, Proust começa a redação de No Caminho de Swann (1913), onde encontramos o romancete Um Amor de Swann.

O tema — com ser velho — ganha nova dimensão graças ao interesse crescente pela mulher tanto no campo da Psicologia quanto no da Fisiologia, sem se esquecer o da saúde pública. Seus desdobramentos farão que se corporifique ainda com maior força a figura da Mulher Fatal, que em sua faceta moderna e profana se corporifica nas figuras da cigana Carmen e da atriz-prostituta Naná (1879-1880).

Nossos autores estão sob a égide da Belle Époque, que, como sabemos, marca um dos momentos de maior imantação da cultura brasileira pela francesa. As questões debatidas na França encontram eco nas preocupações brasileiras: assim a consolidação da República, a idéia de progresso sócio-cultural, a salvaguarda da saúde pública e, no campo artístico, o esteticismo e a expressão da “identidade” feminina, entre outros. O momento, por tanto, era propício ao desenvolvimento literário da estupefação do homem diante do sexo oposto, cujo mistério insondável ultrapassava os limites de uma sexualidade consentânea com a vida burguesa, ingressando, em alguns casos, no campo do lesbianismo.

A perspectiva machadiana — na esteira dos perfis femininos de Alencar — já compreendia uma grande personagem inquietante, Sofia, cuja continuidade é negada pelo autor, conforme podemos ler no prólogo à terceira edição de Quincas Borba (1899):

A Sofia está aqui toda. Continuá-la seria repeti-la, e acaso repetir o mesmo seria pecado.

Daí a mudança de perspectiva da nova narrativa: estamos diante de um marido ciumento, para quem a esposa pertence ao domínio da malícia e da “traição”. No entanto, a mulher — com toda sua carga de negatividade — não é encontrada na rua, como tantas cortesãs ou atrizes sustentadas por um homem rico, mas traz os elementos delas provenientes os quais — ainda que matizados — não deixarão de atuar no imaginário masculino, donde o ciúme, motor da história e motivo de uma das frases finais de Capitu:

Pois até os defunctos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!”

Para a amiga da infância tornar-se perigosa, mister se fazia uma caracterização em que avultassem elementos ligados a mulheres inquietantes e destruidoras. O conúbio representado por familiaridade fluminense e importação francesa interessa de perto. Ele é a base da representação da suspeita que, aos poucos, vai solapando a relação entre Bentinho e Capitu, fazendo que a plasmação da figura feminina passe obrigatoriamente pela tradição literária do tema, que Machado irá adaptar aos interesses de sua economia narrativa.

Philippe Chardin mostra-nos que, ao contrário da visão clássica ligando o ciúme a dados universais e atemporais, grande parte da literatura moderna vincula tal sentimento ao aspecto social em que ele surge, sendo mesmo um dos principais interesses das obras da Belle Époque. Ora, uma das figuras mais importantes nesse momento, como caracterização do transbordamento feminino é Carmen, tornada realmente popular graças à ópera de Bizet (1875).

Imediatamente vem ao espírito do leitor brasileiro a expressão denunciadora da inquietação provocada por Capitu, os olhos “de cigana oblíqua e dissimulada”, segundo a descrição de José Dias. O texto de Mérimée, descrevendo o rosto dos ciganos, constitui a fonte machadiana:

Leurs yeux sensiblement obliques, bien fendus, très noirs, sont ombragés par des cils longs et épais.

(Seus olhos sensivelmente oblíquos, bem rasgados, muito negros, são escurecidos por cílios longos e espessos.)

Além do aspecto físico, o dado social inclui a origem inferior da mulher fatal, tal como a cigana (Carmen) em relação ao nobre de província (Don José), propiciando, na obra brasileira, a necessidade que tem o narrador / Bentinho de pontuar a ascensão social de Capitu, pelo casamento:

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua,  tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também. (Dom Casmurro).


Gilberto Pinheiro Passos
Sob o Signo do Ciúme: Bentinho e Charles Swann
em Machado de Assis — ensaios da crítica contemporânea
Editora Unesp. São Paulo (SP). 2008.