quarta-feira, 5 de junho de 2013

MACHADO


Entre o reino metafísico da vontade, insaciável e contínua no seu movimento, e o homem perdido na terra, sob o governo de Satanás, a coerência não se forma necessariamente no campo do pessimismo. Machado de Assis, ferido por outra trajetória, não se dobra, servilmente, ao comando de Schopenhauer. Ele, o escritor carioca, vê a cena final do homem como um baile de máscaras, quando os mascarados se retiram, calada a música, reconquistada a fisionomia real. Porque nem por ser o homem a presa do pecado, há de entregar-se só à dor. Sobre a dor o espetáculo tem a sua grandeza, diante do céu mudo e do absurdo do destino. Entre a metafísica e a ética se interpõe um espelho que retrata a luz e a converte num feixe de novas imagens. A realidade se transfigura não apenas em outro estilo, com a cor e a tonalidade diversas. Uma concepção, a concepção humorística da vida dota as coisas e os homens de um eixo novo, capaz de fazê-los circular em torno de outro centro, devorando a matéria-prima do pessimismo. Da cega vontade que domina o mundo, e, dentro dele, o homem, pode deduzir-se não só o pessimismo, como supunha Schopenhauer, mas também a sinfonia ditirâmbica da vida, como demonstraria Nietzsche. Entre uma e outra conseqüência, na encruzilhada de caminhos possíveis, o humorismo sombreia a dúvida, parecendo tudo afirmar ao tempo que tudo nega. Schopenhauer, na sua visão metafísica e especulativa, despreza as provas de felicidade do cotidiano: a felicidade não passa de momentâneo fenômeno negativo, da provisória cessação da dor. Ele viu o espetáculo e não quer enganar-se, depois do baile de máscaras só há o homem nu, dentro do universo. Para o humorista há a realidade e o espetáculo, em dualismo em que um não nega o outro, peças de um só jogo. Nem o desespero, nem a tragédia, mas o vestíbulo do desespero e da tragédia, o homem diante do absurdo, do fluir sem sentido da eternidade, na luta para perseguir valores impossíveis de se concretizarem na limitada gaiola do mundo. Se o Diabo domina a cena, isto sugere que o seu contrário está presente, insinuando que perdeu o comando da alma humana, com a dilaceração dos ideais. Melancólico ou burlesco, Swift ou Rabelais, há lugar, na visão humorística da vida, para todos os temperamentos. A terra que alimenta a planta tem muitos elementos ―  pessimismo, ceticismo, otimismo ―, mas a árvore é uma só. No eterno vir-a-ser da vida, busca o humorista as formas permanentes, conceitos, idéias, valores, para, sentindo-os viver, descobrir a inanidade de tudo, na carência dos fins, na nudez da paisagem. O pretensioso rei da criação percebe que a fantasmagoria é infinita, graças à minuciosa análise que tudo decompõe, deixando as engrenagens à vista, na incoerência universal. O mundo se despe de sua solenidade, varrido por dois furacões opostos, a chama perene que o faz vibrar e o pequeno capricho que ergue o homem do pó à ilusão. A espada de Napoleão vale tanto, ou menos, do que o espadim que alimenta a vaidade do menino ou dos graves senhores do mundo (M.P., XII). A dor universal e a universal bondade de todas as coisas, nessa perspectiva de contrários, se entredevoram. No final, visto o mundo dentro do baile de máscaras, “todas as coisas são boas, omnia bona” (Q. B., X). À luz das estrelas indiferentes, só há figurantes enganados, para os quais a terra foi inventada para o recreio do homem. Só há uma desgraça, para quem se compraz com a festa, e é não nascer (M. P., CXVII). “Ânimo, Brás Cubas, não me seja palerma. Que tens tu com essa sucessão de ruína a ruína ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei e trata de aproveitá-la (M. P., CXXXVII). O nada, que espera o grande lascivo, tem a sua volúpia, mais do que a negação da dor, a própria felicidade de quem vê e não se revolta com o espetáculo. Dentro da casca do riso não há só a dor, também dentro da casca da dor pode haver o riso, no dualismo inconciliável da contemplação humorística da terra, de sua força e da sua miséria.


Raymundo Faoro
Machado de Assis:
A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro.

3ª edição. 1988.