Pensando
nessas coisas, desci do automóvel, atravessei o pátio, que, em 1930, vira cheio
de entusiasmos enfeitados com braçadeiras vermelhas. Numa saleta, um rapaz me
recebeu em silêncio, conduziu-me a outra saleta onde havia uma cama e desapareceu.
O mulato fez a última viravolta e desapareceu também. À porta ficou um soldado
com fuzil. Evidentemente as minhas reflexões tendiam a justificar a inércia, a
facilidade com que me deixara agarrar. Se todos os sujeitos perseguidos
fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo. Revolucionário
chinfrim. Desculpava-me a idéia de não pertencer a nenhuma organização, de ser
inteiramente incapaz de realizar tarefas práticas. Impossível trabalhar em
conjunto. As minhas arma, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no
isolamento. No íntimo havia talvez o incerto desejo de provocar a nova justiça
inquisitorial, perturbar acusadores, exibir em tudo aquilo embustes e
patifarias. Essa vaidade tola devia basear-se na suposição de que enxergariam
em mim um indivíduo, com certo número de direitos. Logo ao chegar, notei que me
despersonalizavam. O oficial de dia recebera-me calado. E a sentinela estava
ali encostada ao fuzil, em mecânica chateação, como se não visse ninguém.
Sentado
na cama, o chapéu em cima da valise, abri com o pente as páginas dos três
volumes que trouxera: Território Humano
de José Geraldo Vieira, Gente Nova de
Agripino Grieco e Dois Poetas de
Octávio de Faria. Li a primeira folha do primeiro umas três vezes, inutilmente.
Conservei esses livros muitos meses, acompanharam-me por diversos lugares,
foram remoídos, esfacelaram-se, pulverizaram-se; hoje, com esforço, consigo
recordar algumas passagens de um deles.
Nada
afinal do que eu havia suposto: o interrogatório, o diálogo cheio de alçapões,
alguma carta apreendida, um romance com riscos e anotações, testemunhas,
sumiram-se. Não me acusavam, suprimiam-me. Bem. Provavelmente seria inquirido
no dia seguinte, acareado, transformado em autos. Que horas seriam? Estirei-me
no colchão, vestido, o livro de José Geraldo aberto sobre o estômago vazio. Em
jejum desde manhã, mas isto apenas me causava uma vaga tontura e escurecia a
vista. E concorria talvez para dificultar a compreensão do texto. Virando a
cabeça, percebia à esquerda o soldado imóvel. Essa precaução me parecia tão
burlesca e tão estúpida que interrompia a leitura vã, ria-me, apesar de tudo.
Sentava-me, acendia um cigarro. Naturalmente não havia cinzeiro, esses luxos de
civilização tinham desaparecido. Burlesco. Recebera a notícia ao meio-dia,
lavara-me, vestira-me, lera dois telegramas desaforados, conversara só com
minha mulher e com d. Irene. Tinham-me feito esperar sete horas. E ali estava
com sentinela à vista. Para quê? Não era mais simples trancarem a porta? Aquele
dispêndio inútil de energia corroborava o desfavorável juízo que eu formara da
inteligência militar. De novo me deitava, pegava a brochura, soltava-a, cobria
os olhos com o chapéu por causa da luz, tornava a levantar-me, acendia outros
cigarros. Já no cimento se acumulavam pontas. Nenhum relógio na vizinhança.
Apenas os indeterminados rumores noturnos da caserna: um apito, vozes remotas,
confusas. O sujeito firme, encostado ao fuzil. Iria passar ali a noite, dormir
em pé? Eu não tinha sono, mas ele, coitado, com certeza engolia bocejos,
amolava-se; Enfim que significação tinha aquilo? Pretenderiam manifestar-me
deferência, considerar-me um sujeito pernicioso demais, que era preciso vigiar,
ou queriam apenas desenferrujar as molas de um recruta desocupado? Compreenderia
ele que era uma excrescência , ganhava cãibras à toa, equilibrando-se ora numa
perna, ora noutra? Se não fosse obrigado a desentorpecer-se e dar-me um tiro em
caso de fuga, aquela extensa vigília só tinha o fim de embrutecê-lo na
disciplina.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. 1ª parte. Viagens.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. Obra póstuma. 1953.