A
VERDADE DÓI
Durante
a ditadura os militares torturaram, física e psicologicamente, para
desmoralizar suas vítimas. Sumiram com comunistas, com suspeitos de serem
comunistas, montaram cenas falsas de suicídio para fotografar o cadáver que
produziram. Ossadas amontoadas esperam até hoje suas identificações, e há
documentos ainda secretos. Há documentos sobre a atual presidente, Dilma
Rousseff, em um cofre. Sou a favor de que se libere tudo de uma vez, e logo.
Primeiro porque o país tem o direito, e o dever, de conhecer sua história, por
mais tenebrosos que sejam os capítulos. No mínimo para que nunca mais se
repitam. Segundo, porque os documentos que estão liberados, revelando que os
militares já monitoravam a vida dos cidadãos muito antes da internet e do
Obama, estão literalmente mofando, carcomidos por fungos, em condições
precárias no Arquivo Nacional, uma vergonha, considerando que a documentação
foi considerada patrimônio da Humanidade, assim como os documentos do nazismo.
Torturaram
garotas como a presidente Dilma, então com 19 anos, que foi cercada com
armamento pesado, presa e torturada. Botaram estudantes, jornalistas, pelegos,
socialistas e simpatizantes no pau-de-arara, para dar choques elétricos,
cacetadas, telefones, socos e pontapés, entre outras barbaridades pelas quais
foram anistiados.
A
ficha da presidente ninguém pode ver, mas existem documentos de outro tipo que
contam essa história de dentro dela, enquanto ela se dava, e contam-na até
hoje, que são as canções, apesar da censura. Artistas tiveram suas canções
decepadas por qualquer palavra que pudesse sugerir contrariedade com o regime,
apesar de este não ser o único critério. A coisa era mais complexa. Ou mais
simplória. Canções eram também censuradas por serem consideradas obscenas, por
ofenderem a família, a ordem, os bons costumes ou a gramática. Ou seja, a
censura agia no mesmo padrão da tortura, estupidamente, e por falta de cultura,
por falso moralismo, por cinismo, por hipocrisia, censurava até o que não estava protestando. Geraldo
Vandré disse sobre a canção que virou hino contra a ditadura, “Pra não dizer
que não falei de flores”, mais conhecida como “Caminhando”: Não fiz canção de
protesto, eu fiz música brasileira.”
O país estava rachado, os militares de um lado
e a esquerda, também rachada, de outro: engajados xenófobos contra alienados
antenados. Os artistas estavam fazendo música, teatro e poesia com a alta
qualidade que lhes é peculiar. Escrever uma canção é um ato político. Não
escrever uma canção também é. Não há ato, aliás, que não seja político. O
Brasil anda esquecido disso porque há tempos só faz politicagem, alianças
pragmáticas em vez de programáticas e loteamento de cargos. Faz política para
os políticos, foda-se a nação. Se não é assim, como explicar o estado do
saneamento básico, da educação e da saúde em todo o território nacional?
Quando
o Papa Francisco carrega ele mesmo sua pasta, está deliberadamente fazendo
política, quando anda de ônibus ou abre a janela do carro para se deixar ser
visto por seu rebanho, também. O próprio Vandré
disse que passaria a compor só canções de amor. Uma canção não precisa
ser de protesto para ser política, mas “Roda Viva”, “Ponteio”, “Jorge
Maravilha”, “Alegria, Alegria”, “Samba de Orly”, “Tropicália”, “Miserere Nobis”,
“Cálice” e muitas, muitas outras, contam-nos essa passagem vergonhosa da
História da Humanidade.
Não
fosse a ditadura militar provavelmente não existiria o “Poema Sujo”, escrito
por Ferreira Gullar na escuridão do exílio, poema esse trazido para o Brasil
gravado em fita rolo, escondido na mala diplomática do “vagabundo” poeta do
Itamaraty, Vinicius de Moraes. É um lindo poema, mas uma família foi
destroçada, um coração de pai foi esmigalhado em seu exílio.
Para
sabermos a História (não para comemorá-la) precisamos enfrentar a verdade, por
mais repugnante que seja. A indignidade com Rubens Paiva, na prisão, na tortura
excessiva que provocou sua morte, na farsa armada no Alto da Boa Vista onde seu
corpo foi enterrado e desenterrado depois, para ser enterrado nas areias da
Praia do Recreio e então ser desenterrado novamente para que seus restos
mortais fossem lançados ao mar, choca. O coronel responsável pelo
desaparecimento , e que de nada se arrepende até hoje, explica: “Quando um
companheiro morre, o guerrilheiro lamenta, mas acaba esquecendo. Não é como o
desaparecimento, que gera uma expectativa eterna.” A esse tipo de conduta é que
os milicos nomeavam “retidão de caráter”. É imprescindível que saibamos, mas
estejamos preparados, a verdade vai doer bem mais do que choques elétricos na uretra.
Adriana
Calcanhotto
Segundo
Caderno de “O Globo”
domingo,
23.3.2014