sexta-feira, 4 de maio de 2012

GR



Descobertas do mundo

Como molduras temporais, os contos inicial e final situam o livro. Remetem o leitor a um quadro histórico, assinalando onde e fazendo cogitar, à maneira da tradição novelística, por que as Primeiras Estórias estão sendo narradas. N’”As Margens da Alegria”, um Menino viaja com os Tios para um lugar onde se ergue uma cidade moderna. N’”Os Cimos”, o Menino retorna ao lugar “onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade.” Índices de modernização, presentes nos outros contos do volume, ganham nestes baliza temporal precisa, o que parece relevante vindo de um autor muito discreto quanto à notação dos fatos históricos. O momento de construção da cidade — que também os localiza em espaço distinto da maioria da obra de Guimarães Rosa — é entretanto permeado por um olhar mítico-romancesco de Menino que se lança ao mundo encantatório, e que é tragado por seus reveses. As questões que tal representação literária suscita — centralmente, por ora, uma visada mitificante numa moldura histórica de modernização — colocam pela primeira vez uma ordem de problemas relativa ao conjunto das Primeiras Estórias.

N’”As Margens da Alegria” um narrador observador conta a viagem do Menino com os Tios. De avião, ele sobrevoa o mundo que parece então pequeno, habitado por seres minúsculos; tudo é confortável e divertido.

Chegam à cidade em construção, em uma chapada, onde ficam hospedados numa casa erguida sobre estacões no clarão da mata. Ali o Menino vê pela primeira vez um peru — imperial, colorido, vultoso. Depois sai com os Tios a passeio num jipe, descobrindo diversos animais e tipos de vegetação. De volta, almoça e corre para revê-lo, mas encontra somente penas e restos. Informam que o bicho fora morto para o aniversário do doutor.

Levam-no a outro passeio; desta vez, nada o cativa. Máquinas derrubam árvores, o ribeirão tem águas cinzentas, já não há pássaros. Após o jantar, o Menino avista no terreiro atrás da casa um peru, talvez o mesmo, mas não, infinitamente menos belo. Quando está quase consolado, outra imagem terrível machuca seus olhos: o peru, saindo da mata, bica a cabeça decepada do primeiro. Mais tarde, porém, passado o novo choque, na treva da noite surgirá o contraponto: um vaga-lume traz de volta a Alegria.

Na última estória do livro o Menino volta ao lugar com o Tio e sabe que a viagem serve para afastá-lo da Mãe, muito doente. Apreensivo e com medo do que possa acontecer a ela, desconfia das pessoas que tentam distraí-lo. Acompanha-o o brinquedo predileto —
 um macaquinho de calças pardas e chapéu emplumado. Antes de chegar, com remorso de ter consigo o brinquedo enquanto a mãe está doente, pensa se deveria se desfazer dele e resolve jogar fora só o chapéu festivo.

Ficam hospedados na mesma casa, onde também o tratam de modo excessivamente cuidadoso. As horas passam a custo; à noite, ele demora a pegar no sono. Um dia, pouco antes do alvorecer, vê na copa de uma árvore um tucano anunciando a manhã com suas cores. De início, é difícil combinar a beleza da cena com a lembrança da Mãe sofrendo, mas, a partir de então, Menino e Tio esperam pelo pássaro que retorna para comer frutos.

Chega um telegrama; percebendo que a Mãe piorara, o Menino nada pergunta ao Tio, apenas repete que ela está “sã e boa”, que ficará “sã e boa”. Após quatro dias, outro telegrama informa que estava curada.

Já no avião, ele sente saudade do que conheceu naqueles dias: do pássaro, do amanhecer, das pessoas, da casa, do jipe, da poeira e até das “noites ofegantes”. De repente, percebe que perdera o macaquinho. Vendo-o chorar, o ajudante do piloto lhe traz o chapéu do boneco. O Menino constrói então uma nova idéia sobre a vida: nela, as coisas nunca se perdem, vão a uma “outra parte” e depois voltam. Une, na imaginação, a Mãe curada, o Macaquinho em trajes de festa, imagens do tucano e da aurora, lugares vistos a pé e de jipe, tudo num só tempo e espaço. Absorto, ele reclama quando o Tio avisa que chegaram, mas agora a vida podia continuar.


Ana Paula Pacheco
em Lugar do Mito
narrativa e processo social nas
Primeiras Estórias de Guimarães Rosa
Nankin. São Paulo. 2006.