Descobertas do mundo
Como molduras
temporais, os contos inicial e final situam o livro. Remetem o leitor a um
quadro histórico, assinalando onde e fazendo cogitar, à maneira da tradição
novelística, por que as Primeiras
Estórias estão sendo narradas. N’”As Margens da Alegria”, um Menino viaja
com os Tios para um lugar onde se ergue uma cidade moderna. N’”Os Cimos”, o
Menino retorna ao lugar “onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade.” Índices
de modernização, presentes nos outros contos do volume, ganham nestes baliza
temporal precisa, o que parece relevante vindo de um autor muito discreto
quanto à notação dos fatos históricos. O momento de construção da cidade — que
também os localiza em espaço distinto da maioria da obra de Guimarães Rosa — é
entretanto permeado por um olhar mítico-romancesco de Menino que se lança ao
mundo encantatório, e que é tragado por seus reveses. As questões que tal
representação literária suscita — centralmente, por ora, uma visada mitificante
numa moldura histórica de modernização — colocam pela primeira vez uma ordem de
problemas relativa ao conjunto das Primeiras
Estórias.
N’”As Margens da Alegria” um narrador observador conta a
viagem do Menino com os Tios. De avião, ele sobrevoa o mundo que parece então
pequeno, habitado por seres minúsculos; tudo é confortável e divertido.
Chegam à cidade em construção, em uma chapada, onde ficam
hospedados numa casa erguida sobre estacões no clarão da mata. Ali o Menino vê
pela primeira vez um peru — imperial, colorido, vultoso. Depois sai com os Tios
a passeio num jipe, descobrindo diversos animais e tipos de vegetação. De
volta, almoça e corre para revê-lo, mas encontra somente penas e restos.
Informam que o bicho fora morto para o aniversário do doutor.
Levam-no a outro passeio; desta vez, nada o cativa. Máquinas
derrubam árvores, o ribeirão tem águas cinzentas, já não há pássaros. Após o
jantar, o Menino avista no terreiro atrás da casa um peru, talvez o mesmo, mas
não, infinitamente menos belo. Quando está quase consolado, outra imagem
terrível machuca seus olhos: o peru, saindo da mata, bica a cabeça decepada do
primeiro. Mais tarde, porém, passado o novo choque, na treva da noite surgirá o
contraponto: um vaga-lume traz de volta a Alegria.
Na última estória do
livro o Menino volta ao lugar com o Tio e sabe que a viagem serve para afastá-lo
da Mãe, muito doente. Apreensivo e com medo do que possa acontecer a ela,
desconfia das pessoas que tentam distraí-lo. Acompanha-o o brinquedo predileto —
um macaquinho de
calças pardas e chapéu emplumado. Antes de chegar, com remorso de ter consigo o
brinquedo enquanto a mãe está doente, pensa se deveria se desfazer dele e
resolve jogar fora só o chapéu festivo.
Ficam hospedados na mesma casa, onde também o tratam de modo
excessivamente cuidadoso. As horas passam a custo; à noite, ele demora a pegar
no sono. Um dia, pouco antes do alvorecer, vê na copa de uma árvore um tucano
anunciando a manhã com suas cores. De início, é difícil combinar a beleza da
cena com a lembrança da Mãe sofrendo, mas, a partir de então, Menino e Tio
esperam pelo pássaro que retorna para comer frutos.
Chega um telegrama; percebendo que a Mãe piorara, o Menino
nada pergunta ao Tio, apenas repete que ela está “sã e boa”, que ficará “sã e
boa”. Após quatro dias, outro telegrama informa que estava curada.
Já no avião, ele sente saudade do que conheceu naqueles
dias: do pássaro, do amanhecer, das pessoas, da casa, do jipe, da poeira e até
das “noites ofegantes”. De repente, percebe que perdera o macaquinho. Vendo-o
chorar, o ajudante do piloto lhe traz o chapéu do boneco. O Menino constrói então
uma nova idéia sobre a vida: nela, as coisas nunca se perdem, vão a uma “outra
parte” e depois voltam. Une, na imaginação, a Mãe curada, o Macaquinho em
trajes de festa, imagens do tucano e da aurora, lugares vistos a pé e de jipe,
tudo num só tempo e espaço. Absorto, ele reclama quando o Tio avisa que
chegaram, mas agora a vida podia continuar.
Ana Paula Pacheco
em Lugar do Mito
narrativa e processo social nas
Primeiras Estórias de
Guimarães Rosa
Nankin. São Paulo. 2006.