terça-feira, 1 de maio de 2012

GR


O que chama a atenção no exame de uma novela como “O Recado do Morro” à luz do nome próprio não é apenas o caráter significativo de que se reveste o Nome. É claro que, quanto a isso, não há mais dúvidas — a essa altura já está bem evidente  que, na obra de Guimarães Rosa, o Nome não tem apenas a função de indicar um personagem ou de individualizá-lo, nem mesmo de caracterizá-lo sumariamente de modo alegórico. O nome próprio, em Guimarães Rosa, significa, ao contrário de todas as opiniões clássicas a respeito da não-significação do Nome. Na obra rosiana, esse significado pode ligar-se à função do personagem na narrativa: o Grivo é quem grifa, Ivo Crônico é quem modifica a cronologia. Orósio é quem a montanha escolhe para destinatário do recado, e assim por diante. Mas o mais importante é que essa significação nunca é isolada e só se verifica realmente se o Nome é tomado no conjunto do texto, como parte de um sistema, em que um elemento só existe por oposição aos outros. O estudo de “O Recado do Morro” ou de “Cara-de-Bronze” demonstra isso de modo a não deixar dúvidas. Mas em cada narrativa as coisas se passam de modo diverso. A forma de articulação dos Nomes com a estrutura narrativa varia de um texto para outro. Por exemplo, em “O Recado do Morro”, o sistema é muito mais fechado (com sua ênfase no número sete, segundo o esquema “um mais seis”) do que em “Cara-de-Bronze” (desenvolvido a partir de uma base tríplice e aberto em indagação).

Da mesma forma, em “Buriti”, estamos diante de um quadro inteiramente novo.

Desde a primeira leitura de “Buriti”, ressalta o papel de centralização desempenhado pela figura de iô Liodoro. É para ele que tudo converge, é nele que tudo se articula, é dele que se irradiam os acontecimentos, é seu peso de patriarca e proprietário que domina o universo do conto — ou, pelo menos, o universo humano, social e terreno. Seu nome é Liodoro Maurício Faleiros.

Liodoro é Heliodoro, sol de ouro (a rigor,, dom de Hélios, dádiva do sol. Mas, evidentemente, neste caso, é na fonte da etimologia popular que o autor vai beber —como o texto o comprova), ceentro do sistema, em torno do qual gravitam a família e os agregados do Buriti Grande. Lio é também o radical que indica ‘liso’. Liodoro, liso e duro. Pois liso e duro, com roliço,são características insistentemente disseminadas pelo texto, num dos vários desdobramentos desse Nome. Lio é ainda feixe, vínculo a articular entre si os diversos personagens e acontecimentos da trama. Outra faixa de significados postos em ação por esse significante é a de liana, no contínuo enleamento e enredamento em que se tecem os fios do enredo e do texto, num emaranhado vegetal em torno à grande árvore que é iô Liodoro.

Árvore porque ele é Maurício, como sua mãe, a vovó Maurícia dos gerais, figura quase mítica evocada pela família. Maurício como mouro, moreno que é, diferente de sua filha Glorinha, lourinha, “loura, ou, ou, alourada”. Mas, sobretudo, Maurício como o Buriti, palmeira cujo nome científico é Mauritia vinifera. Natural, pois, que sua mulher se chamasse iaiá Vininha, autenticando a homologia com seu Nome, que também alude a Vênus e confirma que iô Liodoro vive sob o signo do amor. Mas iaiá Vininha não vive no conto, é apenas mencionada de passagem para reforçar as marcas semânticas do Nome de iô Liodoro. Em seguida, desaparecee, por não ter nenhum outro papel a cumprir na narrativa — as mulheres serão outras.

Mas o homem é Liodoro Maurício Faleiros. Faleiros, o macho, como seu pai e seu tio, o velho André Faleiros, mencionado em outro conto, pai do filho de dona Rosalina, virilidade já marcada pela descendência em “A Estória de Lélio e Lina”. Faleiros como falo, acentuando o valor do buriti como símbolo fálico e encarnação vegetal do sexo, papel tão claramente confirmado por todo o texto.

O significante do Nome de iô Liodoro se desintegra e se reintegra, pois, numa constelação de significados múltiplos e moventes. Buriti preso à terra, filho dos gerais, traz do pai e da mãe algumas marcas que legitimam sua autoridade natural sobre aqueles que o cercam. É ele também quem garante a sobrevivência, quem dá sustentto, quem tem dinheiro, quem fornece o ouro. Dele vem a seiva da vida. Seu sol dá luz e calor. De natureza dupla, ilumina como sol e dá sombra como árvore. Dominador e dominável, enleante e enleado, autoritário e brando, duro e macio, iô Liodoro. Vínculo que liga os membros espalhados da família.

Já assinalamos anteriormente (a propósito de Diadorim e Pedro Orósio, por exemplo) um fenômeno que nos parece característico do tratamento dado por Guimarães Rosa ao Nome próprio, ou seja, a pulverização do Nome em diversos elementos que vão tendo vida própria, espalhados pelo texto, reagrupando-se aqui e ali em novas combinações, como variações de um tema ao qual constantemente se volta, seja em solo seja em amplo movimento orquestral. A partir do nome próprio, vão-se desenrolando diversos fios que se entretecem em um sensível trabalho têxtil/textual que forma a trama narrativa.


Ana Maria Machado
em Recado do Nome
leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de
seus personagens.
Imago. Rio de Janeiro. 1976.