O que chama a atenção no exame de uma novela como “O Recado
do Morro” à luz do nome próprio não é apenas o caráter significativo de que se
reveste o Nome. É claro que, quanto a isso, não há mais dúvidas — a essa altura
já está bem evidente que, na obra de
Guimarães Rosa, o Nome não tem apenas a função de indicar um personagem ou de
individualizá-lo, nem mesmo de caracterizá-lo sumariamente de modo alegórico. O
nome próprio, em
Guimarães Rosa , significa, ao contrário de todas as opiniões
clássicas a respeito da não-significação do Nome. Na obra rosiana, esse
significado pode ligar-se à função do personagem na narrativa: o Grivo é quem
grifa, Ivo Crônico é quem modifica a cronologia. Orósio é quem a montanha
escolhe para destinatário do recado, e assim por diante. Mas o mais importante
é que essa significação nunca é isolada e só se verifica realmente se o Nome é
tomado no conjunto do texto, como parte de um sistema, em que um elemento só
existe por oposição aos outros. O estudo de “O Recado do Morro” ou de “Cara-de-Bronze”
demonstra isso de modo a não deixar dúvidas. Mas em cada narrativa as coisas se
passam de modo diverso. A forma de articulação dos Nomes com a estrutura
narrativa varia de um texto para outro. Por exemplo, em “O Recado do Morro”, o
sistema é muito mais fechado (com sua ênfase no número sete, segundo o esquema
“um mais seis”) do que em “Cara-de-Bronze” (desenvolvido a partir de uma base
tríplice e aberto em indagação).
Da mesma forma, em “Buriti”, estamos diante de um quadro
inteiramente novo.
Desde a primeira leitura de “Buriti”, ressalta o papel de
centralização desempenhado pela figura de iô Liodoro. É para ele que tudo
converge, é nele que tudo se articula, é dele que se irradiam os
acontecimentos, é seu peso de patriarca e proprietário que domina o universo do
conto — ou, pelo menos, o universo humano, social e terreno. Seu nome é Liodoro Maurício Faleiros.
Liodoro é
Heliodoro, sol de ouro (a rigor,, dom de
Hélios, dádiva do sol. Mas, evidentemente, neste caso, é na fonte da
etimologia popular que o autor vai beber —como o texto o comprova), ceentro do
sistema, em torno do qual gravitam a família e os agregados do Buriti Grande. Lio é também o radical que indica
‘liso’. Liodoro, liso e duro. Pois liso e
duro, com roliço,são características
insistentemente disseminadas pelo texto, num dos vários desdobramentos desse
Nome. Lio é ainda feixe, vínculo a articular entre si os
diversos personagens e acontecimentos da trama. Outra faixa de significados
postos em ação por esse significante é a de liana,
no contínuo enleamento e enredamento em que se tecem os fios do enredo e do
texto, num emaranhado vegetal em torno à grande árvore que é iô Liodoro.
Árvore porque ele é Maurício,
como sua mãe, a vovó Maurícia dos gerais, figura quase mítica evocada pela
família. Maurício como mouro, moreno que é, diferente de sua
filha Glorinha, lourinha, “loura, ou, ou, alourada”. Mas, sobretudo, Maurício
como o Buriti, palmeira cujo nome científico é Mauritia vinifera. Natural, pois, que sua mulher se chamasse iaiá
Vininha, autenticando a homologia com seu Nome, que também alude a Vênus e
confirma que iô Liodoro vive sob o signo do amor. Mas iaiá Vininha não vive no
conto, é apenas mencionada de passagem para reforçar as marcas semânticas do
Nome de iô Liodoro. Em seguida, desaparecee, por não ter nenhum outro papel a
cumprir na narrativa — as mulheres serão outras.
Mas o homem é Liodoro Maurício Faleiros. Faleiros, o macho, como seu pai e seu
tio, o velho André Faleiros, mencionado em outro conto, pai do filho de dona
Rosalina, virilidade já marcada pela descendência em “A Estória de Lélio e
Lina”. Faleiros como falo, acentuando o valor do buriti como
símbolo fálico e encarnação vegetal do sexo, papel tão claramente confirmado
por todo o texto.
O significante do Nome de iô Liodoro se desintegra e se
reintegra, pois, numa constelação de significados múltiplos e moventes. Buriti
preso à terra, filho dos gerais, traz do pai e da mãe algumas marcas que
legitimam sua autoridade natural sobre aqueles que o cercam. É ele também quem
garante a sobrevivência, quem dá sustentto, quem tem dinheiro, quem fornece o
ouro. Dele vem a seiva da vida. Seu sol dá luz e calor. De natureza dupla,
ilumina como sol e dá sombra como árvore. Dominador e dominável, enleante e
enleado, autoritário e brando, duro e macio, iô Liodoro. Vínculo que liga os
membros espalhados da família.
Já assinalamos anteriormente (a propósito de Diadorim e
Pedro Orósio, por exemplo) um fenômeno que nos parece característico do
tratamento dado por Guimarães Rosa ao Nome próprio, ou seja, a pulverização do
Nome em diversos elementos que vão tendo vida própria, espalhados pelo texto,
reagrupando-se aqui e ali em novas combinações, como variações de um tema ao
qual constantemente se volta, seja em solo seja em amplo movimento orquestral.
A partir do nome próprio, vão-se desenrolando diversos fios que se entretecem
em um sensível trabalho têxtil/textual que forma a trama narrativa.
Ana Maria Machado
em Recado do Nome
leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de
seus personagens.
Imago. Rio de Janeiro. 1976.