segunda-feira, 23 de abril de 2012

ROMANCE XXIV OU DA BANDEIRA DA INCONFIDÊNCIA



Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
− e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras:
olhos colados aos vidros,
mulheres e homens à espreita,
caras disformes de insônia,
vigiando as ações alheias.
Pelas gretas das janelas,
pelas frestas das esteiras,
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência.
Palavras conjeturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas,
rápidas e envenenadas,
engenhosas, sorrateiras.

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
brilham fardas e casacas,
junto com batinas pretas.
E há finas mãos pensativas,
entre galões, sedas, rendas,
e há grossas mãos vigorosas,
de unhas fortes, duras veias,
e há mãos de púlpito e altares,
de Evangelhos, cruzes, bênçãos.
Uns são reinóis, uns, mazombos;

e pensam de mil maneiras;
mas citam Virgílio e Horácio,
e refletem, e argumentam,
falam de minas e impostos,
de lavras e de fazendas,
de ministros e rainhas
e das colônias inglesas.

Atrás de portas fechadas,
À luz de velas acesas,
Uns sugerem, uns recusam,
Uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
Há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada,
Profere-se alguma arenga?
Que bandeira se desdobra?
Com que figura ou legenda?
Coisas da Maçonaria,
do Paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade?
Um gênio a quebrar algemas?

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
“Escreva-me aquela letra
do versinho de Virgílio...”
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
“Tenha meus dedos cortados,
antes que tal verso escrevam...”
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
Ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva
e sobe na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus ― pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
― e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
“Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Lêem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?
(Antiguidades de Nîmes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade ― essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)”
E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.


Cecília Meireles
em Romanceiro da Inconfidência.