Então — e ele e Vargas? E
ante Aranha? A dúvida pertine e o ponto pertence, cortando aqui desconversa,
porquanto dentre bando e numeroso escol — os brasileiros grandes do Rio Grande
— plano adiante inscritos na mesma moldura: tríade que em conjunto giro insólito
a história nos trouxe. Impende a pergunta. Resposta, Deus sabe, só sou
contador. Vínhamos, por exemplo, de visitar Oswaldo Aranha — feérico de
talento, brilho, genialidade, uai, e daquele total conseguido esculpir-se em
ser — e Neves pauteou: “Você estava
extasiado, empolgado...” Mas vi e já advertira em que não menos cedia ele à cordial
fascinação. — “Sagarana (sic sempre),
cuida disto para o João...” — telefonava-me
Aranha alguma vez. Prezavam-se e queriam-se, alta, gauchamente; a despeito de quais-que
despiques, queixas, rixas, unia-os a verdade da amizade. Getúlio Vargas, muito
falávamos a seu respeito, compondo uma nossa tese de controvérsia. Meu
interesse, sincero, pela imensa e imedida individualidade de Vargas,
motivava-se também no querer achar, em sã hipótese, se era por dom congênito,
ou de maneira adquirida mediante estudo e adestramento, que ele praticava o wu wei — “não interferência”, a norma da
fecunda inação e repassado não-esforço de intuição — passivo agente a servir-se
das excessivas forças em torno e delas recebendo tudo pois “por acréscimo”. — “Enigma nenhum, apenas um fatalista de
sorte...” — encurtava João Neves, experimentando fácil dissuadir-me. Mas,
apto ele mesmo ao mistério, sensível às cósmicas correntes, à anima mundi antiga, teria de hesitar, de
vez em quase, também a memória cobradora beliscando-o. — “De fato o Getúlio dá estranhezas, nunca ofegou ou tiritou, nem se
lastimava de frio ou calor, que nós outros todos padecíamos, nada parecia
mortificá-lo...” — concedia-me, assim, pequenas observações. Logo, porém,
sacudia-se daquilo. Fazia pouco de minha admiração-e-simpatia por Vargas, sem
com ela se agastar. Diferença fundamental de temperamentos em contraste — o
ousado opugnador sem coleios e o elaborador expectante do contempo — de certo
modo inconciliava-os: por um lado insofrido espanejar-se contra visco, de outra
banda quieto apartar-se de picadas. Voltas e contravoltas de longo acontecer,
as vãs vicissitudes fizeram o resto. Ou injunções de foro íntimo, públicas concepções
diversas. Aproximações, afastamentos, reaproximações, como termos periódicos,
patenteiam nada de outro que uma forma do “kaempfende
Liebe”, de afeto combatente. Demais, não se pisaram nem cuspiram nos
ponchos, haveriam de entender-se, dia ou dia, em fim; já não pelo hábito
caroável e em tradição cavalheiresca, mas por vinculação predeterminada e
obedecida, acima de dessemelhanças ou revergências no obscuro e ambíguo das
causas transitórias. Lembremo-nos sempre do que ainda não houve. Retirou-lhes a tragédia a extensão dessa
substância amorfa e escolhedora — o tempo. Esta horária vida não nos deixa
encerrar parágrafos, quanto mais terminar capítulos. Entanto que, como viável
esteira do próprio tempo, só nos resta, a nós, cegos rastreadores, o desconjuntado
flou de uma má montagem. Recordo: “As coisas estão amarradinhas é em Deus!” —
entimema único que punha em acordo minhas Vovó Chiquinha, de Traíras, no Rio
das Velhas, e Vovó Graciana, de um povoado do Paredão do Urucuia.
Mesmo em meio de política.
João Guimarães Rosa
Discurso de Posse