quarta-feira, 25 de abril de 2012

GR



Então — e ele e Vargas? E ante Aranha? A dúvida pertine e o ponto pertence, cortando aqui desconversa, porquanto dentre bando e numeroso escol — os brasileiros grandes do Rio Grande — plano adiante inscritos na mesma moldura: tríade que em conjunto giro insólito a história nos trouxe. Impende a pergunta. Resposta, Deus sabe, só sou contador. Vínhamos, por exemplo, de visitar Oswaldo Aranha — feérico de talento, brilho, genialidade, uai, e daquele total conseguido esculpir-se em ser — e Neves pauteou: “Você estava extasiado, empolgado...” Mas vi e já advertira  em que não menos cedia ele à cordial fascinação. — “Sagarana (sic sempre), cuida disto para o João...” — telefonava-me Aranha alguma vez. Prezavam-se e queriam-se, alta, gauchamente; a despeito de quais-que despiques, queixas, rixas, unia-os a verdade da amizade. Getúlio Vargas, muito falávamos a seu respeito, compondo uma nossa tese de controvérsia. Meu interesse, sincero, pela imensa e imedida individualidade de Vargas, motivava-se também no querer achar, em sã hipótese, se era por dom congênito, ou de maneira adquirida mediante estudo e adestramento, que ele praticava o wu wei — “não interferência”, a norma da fecunda inação e repassado não-esforço de intuição — passivo agente a servir-se das excessivas forças em torno e delas recebendo tudo pois “por acréscimo”. — “Enigma nenhum, apenas um fatalista de sorte...” — encurtava João Neves, experimentando fácil dissuadir-me. Mas, apto ele mesmo ao mistério, sensível às cósmicas correntes, à anima mundi antiga, teria de hesitar, de vez em quase, também a memória cobradora beliscando-o. — “De fato o Getúlio dá estranhezas, nunca ofegou ou tiritou, nem se lastimava de frio ou calor, que nós outros todos padecíamos, nada parecia mortificá-lo...” — concedia-me, assim, pequenas observações. Logo, porém, sacudia-se daquilo. Fazia pouco de minha admiração-e-simpatia por Vargas, sem com ela se agastar. Diferença fundamental de temperamentos em contraste — o ousado opugnador sem coleios e o elaborador expectante do contempo — de certo modo inconciliava-os: por um lado insofrido espanejar-se contra visco, de outra banda quieto apartar-se de picadas. Voltas e contravoltas de longo acontecer, as vãs vicissitudes fizeram o resto. Ou injunções de foro íntimo, públicas concepções diversas. Aproximações, afastamentos, reaproximações, como termos periódicos, patenteiam nada de outro que uma forma do “kaempfende Liebe”, de afeto combatente. Demais, não se pisaram nem cuspiram nos ponchos, haveriam de entender-se, dia ou dia, em fim; já não pelo hábito caroável e em tradição cavalheiresca, mas por vinculação predeterminada e obedecida, acima de dessemelhanças ou revergências no obscuro e ambíguo das causas transitórias. Lembremo-nos sempre do que ainda não houve.  Retirou-lhes a tragédia a extensão dessa substância amorfa e escolhedora — o tempo. Esta horária vida não nos deixa encerrar parágrafos, quanto mais terminar capítulos. Entanto que, como viável esteira do próprio tempo, só nos resta, a nós, cegos rastreadores, o desconjuntado flou de uma má montagem. Recordo: “As coisas estão amarradinhas é em Deus!” — entimema único que punha em acordo minhas Vovó Chiquinha, de Traíras, no Rio das Velhas, e Vovó Graciana, de um povoado do Paredão do Urucuia.

Mesmo em meio de política.


João Guimarães Rosa
Discurso de Posse