sexta-feira, 27 de abril de 2012

GR


João Guimarães Rosa termina seu livro Grande Sertão: Veredas com a frase:

“O diabo não há! É o que eu digo... Existe é homem humano. Travessia.”

Ficou, então, no ar, desacompanhada de qualquer definição ou explicação, esta afirmação categórica de Riobaldo sobre o verdadeiramente existente: “existe o homem humano”. Quem seria, na verdade, este ente, que o autor chama, à primeira vista tautologicamente, de homem humano?

Do estudo que fiz de Grande Sertão: Veredas em O Roteiro de Deus (Editora Mandarim, 1996), pareceu-me que Guimarães Rosa referia-se, com essa expressão, à definição tomista das ações verdadeiramente humanas: aquelas que o homem não compartilha com os animais — compartilha, por exemplo, comer, reproduzir-se, dormir — e que decorrem da vontade, isto é, do desejo regido pelo conhecimento de seu fim, orientado pela inteligência. O homem humano seria, neste caso, o detentor do livre-arbítrio: o ente que conhece os contrários, as diversas alternativas de ação e que pode escolher entre elas; o ente que lembra suas ações passadas e seus resultados e que conhece, que antecipa, os resultados possíveis de suas ações presentes e futuras. O homem humano é aquele que tem consciência do tempo: aquele que na sua liberdade de escolha, introduzida pela razão, tem a capacidade de observar o curso dos acontecimentos e de mudá-lo, para bem ou para mal, transformando o tempo em história. É a irrupção, no seio da natureza, rompendo o seu ciclo e sua harmonia, da inteligência que tudo observa e que tudo transforma. É aquele que excede.

O homem humano deixado, assim, como um ponto final, na última frase de Grande Sertão: Veredas, é o que Guimarães Rosa vai estudar minuciosamente, na continuação de sua obra, em Primeiras Estórias, de que é o ponto inicial.

Nesse seu estudo, o autor apóia-se fortemente na tradição da cultura ocidental, que lhe veio por intermédio de suas três grandes veias principais: a grega, a judaica e a latina. Arnaldo Momigliano, em seu ensaio “The Fault of the Greeks” (Essays in ancient and modern historiography, Basil Blackwell, Oxford, 1977: 11 e 17) , estuda a fusão dessas três correntes no que se chamou helenismo:

“Existe uma antiga cultura triangular — composta de produções intelectuais judaicas, gregas e latinas — que tem um impacto imediato na maior parte de nós e que é de natureza totalmente diferente do prazer profissional ou diletante que sentimos com as amenidades de civilizações distantes. Este collegium trilingue, em termos acadêmicos, ainda domina nossas mentes (...). Na medida em que nos vem da antiguidade, nossa herança é essencialmente greco-latina-judaica porque é essencialmente helenista. A noção de civilização helenista define tanto o tempo (323-30 a.C.) quanto o espaço (zona mediterrânea) em que estas três culturas convergiram e começaram a reagir umas sobre as outras (...). Mas a fusão das tradições grega, latina e judaica é cristã.”

Segundo Momigliano, a tradição cultural ocidental é helenista e cristã. Elementos gregos, judaicos e latinos são combinados, portanto, historicamente, de maneira específica, no que se conhece por helenismo (Momigliano, 1977: 9-23), que, por sua vez, é cristianizado nos primeiros séculos de nossa era, formando, assim, a base da cultura ocidental. Elementos culturais diversos, em fusão historicamente dada, são orientados para um caminho religioso determinado — são teologizados.

Tendo em vista que a obra de Guimarães Rosa tem raízes profundas na tradição cultural ocidental não só por sua utilização de seus temas típicos, mas também pela concepção que demonstra do mundo e do homem — do homem humano —, pareceu-me possível tentar localizar, nos textos rosianos, esta fusão de que fala Momigliano — este helenismo cristianizado e, até mesmo, este helenismo em via de cristianização.

Nessa tentativa e para não nos perder na diversidade de elementos combinados no helenismo — mitológicos, filosóficos, éticos, religiosos e artísticos — será necessário isolar um tema específico da obra rosiana, que articule número significativo destes elementos diversos, e observar, a seguir, como se processa sua cristianização.

O tema que se apresenta imediatamente. por preencher os requisitos acima indicados, é o tema de Narciso, que encontramos no conto “O espelho”. De origem grega, é transposto para a literatura por escritores latinos. Esta fusão específica — o Narciso tal como encontrado em Ovídio, por exemplo — é cristianizada na obra rosiana num processo que atinge os elementos judaicos, incorporados pelo cristianismo. É esta transformação de um tema mitológico e artístico em tema eminentemente religioso que tentarei seguir, examinando os contos de Primeiras Estórias.

Brasília, dezembro de 1996.


Heloisa Vilhena de Araujo
em O Espelho
contribuição ao estudo de Guimarães Rosa
Mandarim. São Paulo. 1998.