sexta-feira, 18 de julho de 2014

OS INCONFIDENTES

Assentada

Aos trinta dias do mês de junho de mil e setecentos e oitenta e nove anos, nesta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, em casas de residência do Desembargador Pedro José Araújo de Saldanha, do Desembargo de Sua Majestade Fidelíssima, Ouvidor-Geral e Corregedor desta Comarca, onde eu, Escrivão nomeado pelo Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena, Governador e Capitão General desta Capitania de Minas Gerais, fui vindo e, sendo aí, por ele dito Ministro foram inquiridas e perguntadas as testemunhas que para esta Devassa foram chamadas, das quais seus ditos, nomes e idades, são os que ao diante se seguem, do que para constar fiz este termo; e eu, o Bacharel José Caetano César Manitti, Escrivão nomeado, o escrevi.

Testemunha 21ª

Inácio Correia Pamplona, homem branco, Mestre de Campo Regente do Bambuí, natural da Ilha Terceira, Bispado de Angra, morador da Freguesia dos Prados, Comarca do Rio das Mortes, que vive de suas fazendas, idade de cinquenta e oito anos, testemunha a quem o dito Ministro deferiu o juramento dos Santos Evangelhos em um livro deles em que pôs sua mão direita, sob cargo do qual lhe encarregou que com boa e sã consciência jurasse a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado, o que prometeu fazer como lhe estava encarregado.

E perguntado pelo conteúdo no Auto desta Devassa, que todo lhe foi lido, disse que ele, testemunha, sabe que estava para haver nestas Minas o levante que o Auto acusa; e a razão por que o sabe vem a ser que convidando-o por carta o Vigário de São José do Rio das Mortes, Carlos Correia de Toledo, para ir ter naquela Vila à Semana Santa, indo ele, testemunha, com efeito ver ali a Procissão de Passos no dia 29 de março do corrente ano, e conversando com o dito Vigário, ele lhe disse que estava para haver um levante em Minas; e que o Alferes Joaquim José, por alcunha Tiradentes, se achava no Rio de Janeiro a fazer séquito; e que no caso de haver a desordem, se havia cortar a cabeça ao Excelentíssimo Senhor General e levá-la ao pelourinho para fazer horror aos maus; e que imediatamente se praticaria o mesmo com o Ajudante de Ordens Francisco Antônio Rebelo, segundo sua lembrança, fazendo-se o mesmo ao Coronel Carlos José da Silva, por ser o que promovia os tributos; mas que ele, Vigário, era de diverso sentimento, votando que antes se mandasse ir embora o dito Excelentíssimo Senhor General com toda a sua família; e que igualmente não fosse morto o referido Coronel Carlos José, por ser seu xará – que vem a dizer – do mesmo nome; acrescentando que, para o novo governo, já havia leis feitas e que nos primeiros três anos serviriam os eleitos; e depois iriam servindo os mais, anualmente; e que todos os que devessem à Fazenda Real seriam perdoados inteiramente; e como o dito Vigário se achava estudando um sermão, e se divertiram em outras coisas o resto do dia, lhe não comunicou mais nada; ele, testemunha, se recolheu para sua casa, sem tenção já de lá ir na dita Semana Santa, como assim sucedeu. Na quarta-feira de trevas lhe escreveu ele, testemunha, desculpando-se com moléstia afetada de não poder ir assistir à dita função; e o portador da carta, que era um mulato seu lhe contou que o mesmo Vigário, lida que foi aquela carta, se voltara para ele e lhe dissera que a moléstia era de manha, e que entrara a passear como raivoso de uma para outra parte, batendo com a carta na cabeça, despedindo-o assim sem mais resposta; nem ele, testemunha, até ao dia presente, se encontrou mais com o dito Vigário.

Passados dias veio ao sítio dele, testemunha, denominado o Mendanha, um sujeito do Rio de Janeiro chamado Manuel Pereira Chaves, que vinha para o fim de conduzir por mandado de Manuel Vaz Carneiro, comissário e morador naquela cidade, uma partida de gado e potros da fazenda dele, testemunha, que de fato levou e seguiu sua viagem; antes porém de partir, particularmente lhe contou o mesmo Chaves que ele sentia bem o não poder vir a Vila Rica para contar ao Coronel Afonso Dias Pereira, por ser da sua terra, para o dizer ao Senhor General, o que tinha ouvido nas Vilas de São João e São José, que era que nestas Minas estava para haver um levante, e se tinham conluiado para este fim as cabeças poderosas; e que, para isto mesmo, se achava na cidade do Rio de Janeiro um oficial destas mesmas Minas a convocar séquito para o detestável fim que se propunha; contou-lhe mais a ele, testemunha, o dito Chaves (que tinha perguntado se ele entrou nesta desordem, ao que tinha dito que não), perguntou se tinha tirado muito, ao que respondeu o pobre: que tudo estava perdido e agora de novo muito mais, porque Sua Excelência queria lançar a derrama, tocando oito oitavas de ouro por cabeça, e que o povo estava para levantar-se dizendo que queria viver em sua liberdade. Ultimamente chegou ao mesmo sítio o Capitão João Dias da Mota, a particulares que aí tinha com André Esteves; e apeando-se a deixar passar a força do sol, neste intervalo lhe perguntou ele, testemunha, se sabia haver chegado à cidade do Rio de Janeiro a nau de guerra, ao que o dito lhe respondeu que não, e que só havia passado para a mesma cidade um Furriel com Portaria do Tenente-Coronel Francisco Antônio Rebelo, e ordem de assistência para o que lhe fosse necessário, obrigando-se a tudo que o dito Furriel pedisse e que, por isto, alguns passavam ia a buscar ali o Alferes Tiradentes. E também lhe disse que, poucos dias antes, havia passado um clérigo para a Borda do Campo, e que no rancho das Lavrinhas do Lourenço, segundo sua lembrança, falara sem rebuços no dito levante ao mesmo dono da estalagem, por nome João da Costa.

No dia vinte de maio do corrente ano veio à casa dele, testemunha, o dito Vigário de São José, dizendo-lhe que o seu destino era ir a um batizado ao Arraial de Carijós; porém, levantando-se ele, testemunha, cedo e indo visitá-lo ao quarto onde se hospedara, o achou já passeando na varanda com o aspecto bastante carregado e perturbado;  e lhe disse que já não ia para Carijós; e que alta noite lhe tinha chegado uma carta, cópia de outra que do caminho do Mato do Rio haviam escrito ao Coronel Francisco Antônio de Oliveira, a qual ele, testemunha, viu na mão do mesmo Vigário, e lendo-a dizia por formais palavras: “Dou-vos parte com certeza que se acham presos, no Rio de Janeiro, Joaquim Silvério e o Alferes Tiradentes para que vos sirva, ou se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra”, cuja carta meteu o dito Vigário na algibeira; e só deixou em cima de uma banca o sobrescrito que ele, testemunha, apanhou, remetendo-o logo a Sua Excelência com a exposição do referido fato no dia vinte e um do dito mês e ano, cuja parte e dito sobrescrito são os mesmos que se acham autuados nesta Devassa, e que ele testemunha reconhece pela própria parte, que lhe foi mostrada, e dito sobrescrito.

Declara mais ele, testemunha, que o Capelão do Arraial do Ouro Branco, ou Vigário, por nome Manuel Pacheco Lopes, lhe dissera que em um sábado, que se contaram vinte e três do dito mês de maio, passara por ali um pardo chamado Vitoriano, que é alferes e mora no Bichinho, de mandado do Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes; e que o dito lhe dissera que ia a Mariana buscar uns papéis para um casamento; porém, que logo no domingo seguinte, vinte e quatro do dito mês, bem cedo passara outra vez o dito Alferes por ali, dizendo-lhe que ia acudir a seu amo, pois temia de o achar já preso, e outros muitos; e que as cartas que levava, lhas abriram os soldados em Vila Rica, pela busca que lhe haviam dado, e lhas tomaram; de cujo fato deu ele, testemunha, também parte a Sua Excelência no dia vinte e oito (Vitoriano O. Veloso deixou Ponta do Morro (Prados) na manhã de 22-05. Dormiu em casa do Pe. Fajardo de Assis, em Carijós, almoçou em Ouro Branco e atingiu o Capão do Lana, onde viu passar preso o Des. Gonzaga; aí pousou e retornou no dia 24 até Carijós, chegando na noite de 25 em Ponta do Morro. Seria de extraordinária compleição física, para cumprir quase 200 km em 4 jornadas. Era portador de mensagem a Francisco de Paula Freire de Andrade, último apelo para que passasse ao Serro e desse início ao levante).

Declara mais ele, testemunha, que o Padre Bento (Pe. Bento Cortês de Toledo, irmão do Pe. Carlos Correia de Toledo e Melo e do Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza. Mais tarde Reitor do Seminário de São José, no Rio.), irmão do Vigário de São José, quando se retirou desta Vila Rica, lhe disse a ele, testemunha, ( estranhando as desordens que via e sentindo amargamente aquela diabrura) que o Padre Assis (Padre José Maria Fajardo de Assis), morador em Carijós, lhe contara: que muito pior seria se ele (Padre Assis) não tirasse, das cartas que o Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes mandava pelo dito Alferes Vitoriano, um certo papel ou bilhete que o dito Alferes tirou e rasgou.

Declara mais ele, testemunha, que depois de todo o referido, viera à sua casa um sobrinho, cujo nome ignora (seria Claro José da Mota o referido sobrinho. Esconder-se-ia na fazenda paterna, em Baependi, e nunca foi localizado pelas investigações do Visconde de Barbacena), mas que é ainda moço, de idade de vinte e cinco anos pouco mais ou menos, alto, claro, e de mediana nutrição, a falar-lhe positivamente no desamparo e desarranjo em que estavam suas tias e primas por causa do sequestro que se havia feito em todos os bens e roças do dito seu tio Vigário, rogando-lhe que fosse seu valedor com Sua Excelência, ou com seu compadre o Coronel Carlos José, para os deixarem ficar na casa sequestrada; ao que ele, testemunha, respondeu que não lhe competia falar em semelhante matéria. E nessa mesma ocasião, chamando ele testemunha o dito sobrinho a um quarto retirado, aí lhe persuadiu a fidelidade que devia ter com a sua Soberana, e outras mais reflexões a este respeito. Por esta causa lhe recontou ele, então, o fato seguinte:

Que no domingo (24-05) em que foi preso seu tio, tinha este sido chamado pelo Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, que lhe viesse falar à Serra de São José, em um capão que fica abaixo da mesma Serra; e que quando lá chegaram, já estava o dito Coronel, muito aflito, proferindo logo as palavras seguintes: - “Amigo, estamos perdidos. E eu sábado  (23-05) mandei um próprio a Vila Rica, a quem Vossa Mercê sabe (Uma tentativa, e já tardia, de conduzir o Ten.-Cel. Francisco de Paula Freire de Andrada a uma atitude máscula, assumindo a iniciativa do levante a partir do Norte de Minas, onde contavam com o Destacamento Diamantino, sob o comando do Cap. Manuel da Silva Brandão), para se passar ao Serro e ajuntar gente; e que eu cá ficava fazendo o que pudesse. O General se abriu comigo. Eu tudo imputei a Joaquim Silvério, e que este foi o que viera à sua casa dar parte do levante a seu irmão Luís Vaz e que, sabendo Vossa Mercê disto, se agoniara muito, por cuja causa vendo ele, dito Joaquim Silvério, uma imagem de um crucifixo em cima de uma mesa, pegara nela e se botara a seus pés, dizendo e prometendo que nunca mais falaria em tal.  Isto mesmo pode Vossa Mercê avisar ao Alvarenga que, se  algum de nós for preso, que não diga outra coisa.” Que o General tudo lhe mandou escrever, e que este papel havia de ir à Corte. Ao que nada respondera o dito seu tio Vigário mais do que: que somente pensava em se retirar. E que montara a cavalo e fora demandando a estrada que segue para a sua casa (Trata-se aqui da casa que o Pe. Toledo possuía no Arraial da Laje, vizinha à do Cap. José de Resende Costa. O caminho entre a Vila de São Jose e o dito arraial passava pelo Bichinho (atual Vitoriano Veloso, MG), atalhando pela Ponta do Morro (onde ficava a fazenda deste nome, pertencente a Francisco A. O. Lopes, proximidades de Prados). E que ele e o dito Coronel subiram a Serra, por ele ir à Vila buscar umas chaves das caixas que lá tinham esquecido a seu tio. E que, olhando d ato da Serra para a chapada, já viram os soldados com o dito seu tio preso; o que reparando, aquele Coronel, se foi sumindo por uma grota; e ele, custosamente e com temor, da mesma forma se ocultou.

Também ele, testemunha, ouviu dizer que no dia quatro de junho, mandara o mesmo Coronel Francisco Antônio um maço de cartas para se entregarem na Vila de São João ao Tenente-Coronel Francisco Joaquim, cujo maço conduzira o mesmo Alferes Vitoriano, que foi o que veio a Vila Rica trazer as outras cartas do referido Coronel, como já fica declarado. Mas também depois ouviu dizer ele, testemunha, que o dito maço era das sortes para se repartirem na forma do costume. Ouviu dizer mais ele, testemunha, que nas capoeiras da roça que o mesmo Coronel tem na Laje, haviam aparecido muitos homens com armas de fogo; sendo uma mulher que ali assiste, cujo nome ignora, a primeira que lhe deu esta notícia; mas que indo a patrulha que por ali andava com ordem para prender o Sargento-Mor Luís Vaz examinar aquele sítio, nada se encontrou (A patrulha é a enviada pelo Tem. Antônio J. Dias Coelho, sob o comando do Ajudante Davi Ottoni, no mesmo dia 24-05, a qual não conseguiu encontrar o S.M. Luís Vaz de Toledo.

Declara mais ele, testemunha, que todos estes fatos acima referidos pela sua ordem, quando os foi sabendo, os pôs na presença do Excelentíssimo Senhor Visconde General, cujas cartas insertas no Auto desta Devassa, sendo-lhe mostradas neste mesmo ato, reconheceu ele, testemunha, pelas próprias e idênticas.

Declara finalmente ele, testemunha, que falando em certa ocasião, não há muitos dias, com o Tenente-Coronel José Franco de Carvalho, vizinho da Vila de São José, sobre o motivo das prisões que se fizeram, se discorreu se seriam por extravio de ouro ou diamantes; ao que respondeu o dito Tenente-Coronel, se seriam também por conta do que se tinha falado em um batizado que se havia feito em casa do Vigário de São José, que foi o do Coronel Alvarenga, no qual se acharam os ditos: Desembargador Ouvidor da Comarca, Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, o Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza, e o Tesoureiro de Ausentes da mesma Comarca, Luís Antônio; dentre os quais , proferiu um que esta Capitania era um formidável Império, ao que saiu aquele Vigário dizendo: “Eu sou o Pontífice”, ou “o Bispo”, do que ele, testemunha, não tem boa lembrança. E que o Coronel Alvarenga ao mesmo tempo acrescentara: “Pois eu serei o Rei e Dona Bárbara a Rainha”. E mais não disse ele, testemunha, nem dos costumes; e leu todo o referido juramento, declarando estar bem e fielmente escrito; e assinou com o dito Ministro, e eu, o Bacharel José Caetano César Manitti, o escrevi.

Saldanha  -  Inácio Correia Pamplona


Autos de Devassa da Inconfidência Mineira I
Câmara dos Deputados – Governo do Estado de Minas Gerais.
Brasília, Belo Horizonte. 1976.