Assentada
Aos
trinta dias do mês de junho de mil e setecentos e oitenta e nove anos, nesta
Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, em casas de residência do
Desembargador Pedro José Araújo de Saldanha, do Desembargo de Sua Majestade
Fidelíssima, Ouvidor-Geral e Corregedor desta Comarca, onde eu, Escrivão
nomeado pelo Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena, Governador e Capitão
General desta Capitania de Minas Gerais, fui vindo e, sendo aí, por ele dito
Ministro foram inquiridas e perguntadas as testemunhas que para esta Devassa
foram chamadas, das quais seus ditos, nomes e idades, são os que ao diante se
seguem, do que para constar fiz este termo; e eu, o Bacharel José Caetano César
Manitti, Escrivão nomeado, o escrevi.
Testemunha
21ª
Inácio
Correia Pamplona, homem branco, Mestre de Campo Regente do Bambuí, natural da
Ilha Terceira, Bispado de Angra, morador da Freguesia dos Prados, Comarca do
Rio das Mortes, que vive de suas fazendas, idade de cinquenta e oito anos,
testemunha a quem o dito Ministro deferiu o juramento dos Santos Evangelhos em
um livro deles em que pôs sua mão direita, sob cargo do qual lhe encarregou que
com boa e sã consciência jurasse a verdade do que soubesse e lhe fosse
perguntado, o que prometeu fazer como lhe estava encarregado.
E
perguntado pelo conteúdo no Auto desta Devassa, que todo lhe foi lido, disse
que ele, testemunha, sabe que estava para haver nestas Minas o levante que o
Auto acusa; e a razão por que o sabe vem a ser que convidando-o por carta o
Vigário de São José do Rio das Mortes, Carlos Correia de Toledo, para ir ter
naquela Vila à Semana Santa, indo ele, testemunha, com efeito ver ali a
Procissão de Passos no dia 29 de março do corrente ano, e conversando com o
dito Vigário, ele lhe disse que estava para haver um levante em Minas; e que o
Alferes Joaquim José, por alcunha Tiradentes, se achava no Rio de Janeiro a
fazer séquito; e que no caso de haver a desordem, se havia cortar a cabeça ao
Excelentíssimo Senhor General e levá-la ao pelourinho para fazer horror aos
maus; e que imediatamente se praticaria o mesmo com o Ajudante de Ordens
Francisco Antônio Rebelo, segundo sua lembrança, fazendo-se o mesmo ao Coronel
Carlos José da Silva, por ser o que promovia os tributos; mas que ele, Vigário,
era de diverso sentimento, votando que antes se mandasse ir embora o dito
Excelentíssimo Senhor General com toda a sua família; e que igualmente não
fosse morto o referido Coronel Carlos José, por ser seu xará – que vem a dizer
– do mesmo nome; acrescentando que, para o novo governo, já havia leis feitas e
que nos primeiros três anos serviriam os eleitos; e depois iriam servindo os mais,
anualmente; e que todos os que devessem à Fazenda Real seriam perdoados
inteiramente; e como o dito Vigário se achava estudando um sermão, e se
divertiram em outras coisas o resto do dia, lhe não comunicou mais nada; ele,
testemunha, se recolheu para sua casa, sem tenção já de lá ir na dita Semana
Santa, como assim sucedeu. Na quarta-feira de trevas lhe escreveu ele,
testemunha, desculpando-se com moléstia afetada de não poder ir assistir à dita
função; e o portador da carta, que era um mulato seu lhe contou que o mesmo
Vigário, lida que foi aquela carta, se voltara para ele e lhe dissera que a
moléstia era de manha, e que entrara a passear como raivoso de uma para outra
parte, batendo com a carta na cabeça, despedindo-o assim sem mais resposta; nem
ele, testemunha, até ao dia presente, se encontrou mais com o dito Vigário.
Passados
dias veio ao sítio dele, testemunha, denominado o Mendanha, um sujeito do Rio
de Janeiro chamado Manuel Pereira Chaves, que vinha para o fim de conduzir por
mandado de Manuel Vaz Carneiro, comissário e morador naquela cidade, uma
partida de gado e potros da fazenda dele, testemunha, que de fato levou e
seguiu sua viagem; antes porém de partir, particularmente lhe contou o mesmo
Chaves que ele sentia bem o não poder vir a Vila Rica para contar ao Coronel
Afonso Dias Pereira, por ser da sua terra, para o dizer ao Senhor General, o
que tinha ouvido nas Vilas de São João e São José, que era que nestas Minas
estava para haver um levante, e se tinham conluiado para este fim as cabeças
poderosas; e que, para isto mesmo, se achava na cidade do Rio de Janeiro um
oficial destas mesmas Minas a convocar séquito para o detestável fim que se
propunha; contou-lhe mais a ele, testemunha, o dito Chaves (que tinha
perguntado se ele entrou nesta desordem, ao que tinha dito que não), perguntou
se tinha tirado muito, ao que respondeu o pobre: que tudo estava perdido e
agora de novo muito mais, porque Sua Excelência queria lançar a derrama,
tocando oito oitavas de ouro por cabeça, e que o povo estava para levantar-se
dizendo que queria viver em sua liberdade. Ultimamente chegou ao mesmo sítio o
Capitão João Dias da Mota, a particulares que aí tinha com André Esteves; e
apeando-se a deixar passar a força do sol, neste intervalo lhe perguntou ele,
testemunha, se sabia haver chegado à cidade do Rio de Janeiro a nau de guerra,
ao que o dito lhe respondeu que não, e que só havia passado para a mesma cidade
um Furriel com Portaria do Tenente-Coronel Francisco Antônio Rebelo, e ordem de
assistência para o que lhe fosse necessário, obrigando-se a tudo que o dito
Furriel pedisse e que, por isto, alguns passavam ia a buscar ali o Alferes
Tiradentes. E também lhe disse que, poucos dias antes, havia passado um clérigo
para a Borda do Campo, e que no rancho das Lavrinhas do Lourenço, segundo sua
lembrança, falara sem rebuços no dito levante ao mesmo dono da estalagem, por
nome João da Costa.
No
dia vinte de maio do corrente ano veio à casa dele, testemunha, o dito Vigário
de São José, dizendo-lhe que o seu destino era ir a um batizado ao Arraial de
Carijós; porém, levantando-se ele, testemunha, cedo e indo visitá-lo ao quarto
onde se hospedara, o achou já passeando na varanda com o aspecto bastante
carregado e perturbado; e lhe disse que
já não ia para Carijós; e que alta noite lhe tinha chegado uma carta, cópia de
outra que do caminho do Mato do Rio haviam escrito ao Coronel Francisco Antônio
de Oliveira, a qual ele, testemunha, viu na mão do mesmo Vigário, e lendo-a
dizia por formais palavras: “Dou-vos parte com certeza que se acham presos, no
Rio de Janeiro, Joaquim Silvério e o Alferes Tiradentes para que vos sirva, ou
se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e
mais vale morrer com honra que viver com desonra”, cuja carta meteu o dito
Vigário na algibeira; e só deixou em cima de uma banca o sobrescrito que ele,
testemunha, apanhou, remetendo-o logo a Sua Excelência com a exposição do
referido fato no dia vinte e um do dito mês e ano, cuja parte e dito
sobrescrito são os mesmos que se acham autuados nesta Devassa, e que ele
testemunha reconhece pela própria parte, que lhe foi mostrada, e dito
sobrescrito.
Declara
mais ele, testemunha, que o Capelão do Arraial do Ouro Branco, ou Vigário, por
nome Manuel Pacheco Lopes, lhe dissera que em um sábado, que se contaram vinte
e três do dito mês de maio, passara por ali um pardo chamado Vitoriano, que é
alferes e mora no Bichinho, de mandado do Coronel Francisco Antônio de Oliveira
Lopes; e que o dito lhe dissera que ia a Mariana buscar uns papéis para um
casamento; porém, que logo no domingo seguinte, vinte e quatro do dito mês, bem
cedo passara outra vez o dito Alferes por ali, dizendo-lhe
que ia acudir a seu amo, pois temia de o achar já preso, e outros muitos; e que
as cartas que levava, lhas abriram os soldados em Vila Rica, pela busca que lhe
haviam dado, e lhas tomaram; de cujo fato deu ele, testemunha, também parte a
Sua Excelência no dia vinte e oito (Vitoriano O. Veloso deixou Ponta do Morro
(Prados) na manhã de 22-05. Dormiu em casa do Pe. Fajardo de Assis, em Carijós,
almoçou em Ouro Branco e atingiu o Capão do Lana, onde viu passar preso o Des.
Gonzaga; aí pousou e retornou no dia 24 até Carijós, chegando na noite de 25 em
Ponta do Morro. Seria de extraordinária compleição física, para cumprir quase
200 km em 4 jornadas. Era portador de mensagem a Francisco de Paula Freire de
Andrade, último apelo para que passasse ao Serro e desse início ao levante).
Declara
mais ele, testemunha, que o Padre Bento (Pe. Bento Cortês de Toledo, irmão do
Pe. Carlos Correia de Toledo e Melo e do Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza.
Mais tarde Reitor do Seminário de São José, no Rio.), irmão do Vigário de São
José, quando se retirou desta Vila Rica, lhe disse a ele, testemunha, (
estranhando as desordens que via e sentindo amargamente aquela diabrura) que o
Padre Assis (Padre José Maria Fajardo de Assis), morador em Carijós, lhe
contara: que muito pior seria se ele (Padre Assis) não tirasse, das cartas que
o Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes mandava pelo dito Alferes
Vitoriano, um certo papel ou bilhete que o dito Alferes tirou e rasgou.
Declara
mais ele, testemunha, que depois de todo o referido, viera à sua casa um
sobrinho, cujo nome ignora (seria Claro José da Mota o referido sobrinho.
Esconder-se-ia na fazenda paterna, em Baependi, e nunca foi localizado pelas
investigações do Visconde de Barbacena), mas que é ainda moço, de idade de
vinte e cinco anos pouco mais ou menos, alto, claro, e de mediana nutrição, a
falar-lhe positivamente no desamparo e desarranjo em que estavam suas tias e
primas por causa do sequestro que se havia feito em todos os bens e roças do
dito seu tio Vigário, rogando-lhe que fosse seu valedor com Sua Excelência, ou
com seu compadre o Coronel Carlos José, para os deixarem ficar na casa
sequestrada; ao que ele, testemunha, respondeu que não lhe competia falar em
semelhante matéria. E nessa mesma ocasião, chamando ele testemunha o dito
sobrinho a um quarto retirado, aí lhe persuadiu a fidelidade que devia ter com
a sua Soberana, e outras mais reflexões a este respeito. Por esta causa lhe
recontou ele, então, o fato seguinte:
Que
no domingo (24-05) em que foi preso seu tio, tinha este sido chamado pelo
Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, que lhe viesse falar à Serra de
São José, em um capão que fica abaixo da mesma Serra; e que quando lá chegaram,
já estava o dito Coronel, muito aflito, proferindo logo as palavras seguintes:
- “Amigo, estamos perdidos. E eu sábado
(23-05) mandei um próprio a Vila Rica, a quem Vossa Mercê sabe (Uma
tentativa, e já tardia, de conduzir o Ten.-Cel. Francisco de Paula Freire de Andrada
a uma atitude máscula, assumindo a iniciativa do levante a partir do Norte de
Minas, onde contavam com o Destacamento Diamantino, sob o comando do Cap.
Manuel da Silva Brandão), para se passar ao Serro e ajuntar gente; e que eu cá
ficava fazendo o que pudesse. O General se abriu comigo. Eu tudo imputei a
Joaquim Silvério, e que este foi o que viera à sua casa dar parte do levante a
seu irmão Luís Vaz e que, sabendo Vossa Mercê disto, se agoniara muito, por
cuja causa vendo ele, dito Joaquim Silvério, uma imagem de um crucifixo em cima
de uma mesa, pegara nela e se botara a seus pés, dizendo e prometendo que nunca
mais falaria em tal. Isto mesmo pode
Vossa Mercê avisar ao Alvarenga que, se
algum de nós for preso, que não diga outra coisa.” Que o General tudo
lhe mandou escrever, e que este papel havia de ir à Corte. Ao que nada
respondera o dito seu tio Vigário mais do que: que somente pensava em se
retirar. E que montara a cavalo e fora demandando a estrada que segue para a
sua casa (Trata-se aqui da casa que o Pe. Toledo possuía no Arraial da Laje,
vizinha à do Cap. José de Resende Costa. O caminho entre a Vila de São Jose e o
dito arraial passava pelo Bichinho (atual Vitoriano Veloso, MG), atalhando pela
Ponta do Morro (onde ficava a fazenda deste nome, pertencente a Francisco A. O.
Lopes, proximidades de Prados). E que ele e o dito Coronel subiram a Serra, por
ele ir à Vila buscar umas chaves das caixas que lá tinham esquecido a seu tio.
E que, olhando d ato da Serra para a chapada, já viram os soldados com o dito
seu tio preso; o que reparando, aquele Coronel, se foi sumindo por uma grota; e
ele, custosamente e com temor, da mesma forma se ocultou.
Também
ele, testemunha, ouviu dizer que no dia quatro de junho, mandara o mesmo
Coronel Francisco Antônio um maço de cartas para se entregarem na Vila de São
João ao Tenente-Coronel Francisco Joaquim, cujo maço conduzira o mesmo Alferes
Vitoriano, que foi o que veio a Vila Rica trazer as outras cartas do referido
Coronel, como já fica declarado. Mas também depois ouviu dizer ele, testemunha,
que o dito maço era das sortes para se repartirem na forma do costume. Ouviu
dizer mais ele, testemunha, que nas capoeiras da roça que o mesmo Coronel tem
na Laje, haviam aparecido muitos homens com armas de fogo; sendo uma mulher que
ali assiste, cujo nome ignora, a primeira que lhe deu esta notícia; mas que
indo a patrulha que por ali andava com ordem para prender o Sargento-Mor Luís
Vaz examinar aquele sítio, nada se encontrou (A patrulha é a enviada pelo Tem.
Antônio J. Dias Coelho, sob o comando do Ajudante Davi Ottoni, no mesmo dia
24-05, a qual não conseguiu encontrar o S.M. Luís Vaz de Toledo.
Declara
mais ele, testemunha, que todos estes fatos acima referidos pela sua ordem,
quando os foi sabendo, os pôs na presença do Excelentíssimo Senhor Visconde General,
cujas cartas insertas no Auto desta Devassa, sendo-lhe mostradas neste mesmo
ato, reconheceu ele, testemunha, pelas próprias e idênticas.
Declara
finalmente ele, testemunha, que falando em certa ocasião, não há muitos dias,
com o Tenente-Coronel José Franco de Carvalho, vizinho da Vila de São José,
sobre o motivo das prisões que se fizeram, se discorreu se seriam por extravio
de ouro ou diamantes; ao que respondeu o dito Tenente-Coronel, se seriam também
por conta do que se tinha falado em um batizado que se havia feito em casa do
Vigário de São José, que foi o do Coronel Alvarenga, no qual se acharam os
ditos: Desembargador Ouvidor da Comarca, Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, o
Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza, e
o Tesoureiro de Ausentes da mesma Comarca, Luís Antônio; dentre os quais ,
proferiu um que esta Capitania era um formidável Império, ao que saiu aquele
Vigário dizendo: “Eu sou o Pontífice”, ou “o Bispo”, do que ele, testemunha,
não tem boa lembrança. E que o Coronel Alvarenga ao mesmo tempo acrescentara:
“Pois eu serei o Rei e Dona Bárbara a Rainha”. E mais não disse ele,
testemunha, nem dos costumes; e leu todo o referido juramento, declarando estar
bem e fielmente escrito; e assinou com o dito Ministro, e eu, o Bacharel José
Caetano César Manitti, o escrevi.
Saldanha -
Inácio Correia Pamplona
Autos
de Devassa da Inconfidência Mineira I
Câmara
dos Deputados – Governo do Estado de Minas Gerais.
Brasília,
Belo Horizonte. 1976.